Depois de percorrer o corredor fictício da imaginação humana, passando por várias possibilidades, desde aquelas mais bizarras, até aquelas mais suaves e inocentes, você se depara com três casos:
CASO 1: João, 35 anos, morador da cidade de São Paulo, decide procurar ajuda depois que percebeu algo estranho nos últimos dias. Ao longo das semanas, pensamentos pedófilos invadiram sua cabeça de um jeito insistente, em um tipo de fixação dolorosa, atrapalhando sua vida pessoal, profissional e até financeira. Depois de explicar o que vinha acontecendo com ele, o seu psicanalista responde: “Seu monstro, sem coração. Saia daqui, agora!!!”
CASO 2: Maria, 29 anos, moradora de rua na cidade de Salvador, é entregue ao serviço social do seu bairro depois de ter atacado algumas pessoas que passavam perto da sua tenda improvisada. Logo após ouvir o relato do caso, o assistente social encara Maria e, com um olhar de raiva, desabafa: “Sua maluca, sem noção. Vai procurar algum trabalho. Vagabunda, idiota”.
CASO 3: Sérgio, 35 anos, militante bolsonarista e defensor do fim da quarentena, é levado até o “consultório” de um sociólogo depois de várias confusões feitas ao longo de uma carreata em favor do candidato Jair Bolsonaro. Depois de ouvir o acontecido, o sociólogo encara Sérgio e, com um olhar de raiva, desabafa: “Seu fascista, psicopata. Seu capeta malvado. Seu asno idiota”.
As duas primeiras descrições acima (a de João e a de Maria) foram produzidas por mim, num gesto de completa arbitrariedade, sem qualquer rigor ou fundamento, enquanto a terceira descrição (Sérgio), ao contrário, foi baseada em algumas postagens que encontrei ao longo do Facebook nesses últimos tempos. Minha pergunta é simples e direta, sem muitos rodeios: Por que nos dois primeiros casos algo parece errado, fora do lugar, um exagero, mas não no último? O curioso é que eu praticamente descrevi a mesma circunstância nos três cenários, trocando apenas nomes e profissões. Nos três casos os profissionais lidam com “objetos de pesquisa” desviantes, perigosos. “Objetos de pesquisa” que comprometem a segurança de todos ao redor, além de comprometerem valores que consideramos fundamentais. Mas por que a resposta fictícia do psicanalista e do assistente social parece tão absurda e exagerada, enquanto no caso do sociólogo tudo soa como um grande Déjà vu?
Desde o começo psicólogos, psicanalistas, além de outras áreas, se deparam com um código de ética já estabelecido, com fronteiras muito óbvias, sendo impossível ignorar. Em ciências sociais, ao contrário, não se aprende nada disso, a não ser quando alguém entra na pós-graduação e se depara com alguma pesquisa específica que precisa ser feita. Para além disso, a palavra Ética não é apresentada aos graduandos, nem mesmo como um sussurro distante. Por outro lado, termos “mais nobres” povoam os corredores e as aulas, como “ideologia”, “sistema, “estrutura”, etc, mas “ética”... jamais!!! Por que estudar ética, não é?
O estudo da ética não passa apenas pelas regras de convivência, como se fosse um conjunto de procedimentos fixos numa parede, mas principalmente pelas formas como minha linguagem lida com o Outro concreto. Quais são os usos dessa linguagem, seus limites, suas implicações? Quem é o Outro nessa malha de significantes que transborda da minha fala ou dos teclados do meu notebook? Perguntas desse tipo conseguem ir além da simples relação entre linguagem e mundo, como imaginava o primeiro Wittgenstein. Sendo um critério ético, e não epistemológico, o vínculo é entre a Linguagem e o Outro, de forma que Heidegger ou Levinas concordariam. Quais são as formas que regulam esse vínculo e, principalmente, a maneira como a PALAVRA acolhe as múltiplas modalidades de existência? Se a linguagem é a casa do Ser, e o Ser é o mundo enquanto transbordamento, quase como um horizonte não visível de relações que permanecem nos bastidores de tudo o que existe, logo a linguagem é o ponto de encontro dessas mesmas relações, é o ponto de encontro do Outro. Ao menos é assim que se espera da psicanálise, do serviço social, mas não das ciências sociais. Por algum motivo estranho, na fronteira do cômico, nossa área vira as costas ao debate ético, ao menos aquele mais aprofundado. Não pensamos duas vezes antes de rotular, de nomear ou mesmo de definir todo um sistema de classificações. Enquanto outras outras áreas revelam um cuidado no uso de termos, conceitos ou ideias, as ciências sociais não se limitam, não se refreiam. A PALAVRA, ao invés de um ponto de encontro, se torna uma arma ressentida apontada a alguém. Enquanto outras áreas observam seus “objetos de estudo” de forma complexa, entendendo seus descolamentos, contornos e características, o “objeto” das ciências sociais, ao menos recentemente no Facebook, é submetido a um nível de simplificação e violência fora do normal. Por isso que é incomum um psicanalista rotular um pedofilo de monstro, mas não é incomum um sociólogo se referir a um grupo político como “capeta”, “psicopata”, “genocida”, etc. Por que as ciências sociais se rendem tão facilmente a retórica inflamada e infantil do senso comum, enquanto outras áreas tem um cuidado maior?
Com a psicanálise, além de outras abordagens, a complexidade é sempre o critério, mesmo quando incomoda, mesmo quando vai além da pura conveniência. Nada nunca é tão simples, apesar da demanda do senso comum por respostas sólidas e bem direcionadas, ou sua busca ingênua por culpados e causas bem definidas. A linguagem quando encontra a complexidade, quando deixa de lado a sedução infantil por alternativas simples, compreende o Outro dentro de camadas, ou dentro de redes, ou dentro de sistemas, etc... o ponto é, o Outro é sempre posicionado dentro de um circuito de deslocamento, apresentando trajetórias, contornos, profundidade. O Outro não é simplificado ao extremo da conveniência, talvez a fim de atender a algum propósito militante... muito pelo contrário. O Outro não é um vilão dentro de um roteiro conveniente criado por algum diretor também conveniente, como Michael Bay e sua série transformers. No cinema é óbvio que personagens podem não ter profundidadade, assim como o enredo pode ser simples, já que o diretor comanda os rumos da narrativa. Tudo tem um proposito, tudo é uma peça dentro de um jogo maior. Mas na vida real, naquele espaço de gente madura, não é tao simples assim. A psicanálise nos ensina, assim como tantas outras áreas, que é preciso ter cuidado com a linguagem que se usa, porque palavras podem ser armadilhas difíceis de desarmar. Ninguem pede que sociólogos sejam imparciais... ninguem carrega esse nivel de neutralidade. Ser responsavel não significa ser neutro... ser responsável não significa não se posicionar. Desculpem a redundância, mas ser responsável é ser responsável, independentemente da postura adotada ou do que se faça ou se pense. Ser responsável é pensar duas vezes, ou mais, antes de fazer uma postagem inflamada no Faceb0ok, é ter cuidado ao lidar com o Outro, mesmo quando ele te insulta, mesmo quando parece perigoso. Ser responsável é ter cuidado no uso da linguagem e na forma como as palavras lidam com corpos. Claro que psicanalistas não odeiam completamente o Facebook, mas apenas sua forma atual de funcionamento, o que nos leva, talvez, a uma pequena esperança de que no futuro as pessoas encontrem modos mais saudáveis de circular nas redes sociais, ao menos esse é meu desejo mais profundo.
REFERÊNCIA DA IMAGEM:
https://economictimes.indiatimes.com/wealth/save/6-ways-to-make-your-facebook-account-more-secure/articleshow/64707960.cms?from=mdr