A partir do olhar sobre a atual crise global provocada pelo coronavírus, crise que tem assustado a todos nós, diga-se de passagem, podemos analisar as mais diversas questões, e não estariam entre as exceções as relativas às comparações entre democracia e autoritarismo. O vírus tem mostrado que há questões inquietantes acerca dos regimes democráticos diante das quais as mais nobres respostas não são capazes de esconder as mais incômodas constatações. Imaginemos, numa sociedade democrática, o surgimento de um vírus altamente contagioso e com considerável taxa de mortalidade em determinados grupos de indivíduos, ante o qual o combate mais eficaz consiste no isolamento da população como meio de se evitar uma elevação rápida do contágio sobre extensos territórios. Imaginemos agora que alguns líderes de determinadas instituições civis, a exemplo de igrejas, acionando a justiça para que se evite a suspensão das atividades dessas mesmas instituições durante o desenrolar da epidemia, eventos com consideráveis aglomerações, e que a justiça lhes conceda ganho de causa.
Agora é hora de imaginarmos situação semelhante numa sociedade vivendo sob um regime autoritário ou autocrático, exceto pela impossibilidade desses líderes acionarem a justiça e de se sobreporem às ordens governamentais. A pergunta é simples, pois já induz a uma resposta igualmente simples: em qual sociedade seria mais fácil controlar a disseminação desse vírus? Por óbvio, na sociedade gerida sob o viés autoritário. Aqui, embora seja dramático admitirmos, autoritarismo significaria vida e democracia, morte. Aprofundando-nos nas observações inquietantes, salta-nos aos olhos a seguinte questão de fundo: a democracia é um regime que permite a existência de instituições capazes de atentar contra a própria saúde pública da população em nome de interesses privados dos operadores destas mesmas instituições. Num regime autoritário, exceto pelos condutores do próprio aparelho de Estado, instituições daquele tipo poderiam ser expurgadas ou mesmo nem vir a surgir, devido ao braço pesado do Leviatã.
Pois bem, o que aqui se imaginou está sendo visto nesses dias de pandemia provocada pelo coronavírus. Na terra de Mao Tsé-Tung, país associado pela opinião pública ocidental a um regime autoritário e governado pelo Partido Comunista da China, o combate à disseminação dessa moléstia vem sendo considerado bastante eficaz pelos meios de comunicação de todo o mundo, mesmo se considerarmos as críticas pontuais quanto ao fato de o governo local supostamente ter escondido da sua população e do restante do mundo a gravidade da situação epidêmica, durante o seu estágio inicial. Por outro lado, em alguns dos países europeus, todos estes governados sob regimes consensualmente considerados democráticos pela literatura da ciência política internacional, a disseminação do vírus e as suas consequências nos seus respectivos sistemas de saúde têm se mostrado altamente preocupantes, com a epidemia sendo considerada por muitos especialistas como algo quase fora de controle, sobretudo na Itália e na Espanha.
Eu sei, diante dessa simplificadora comparação e de um mundo que reflete pouco e reproduz notícias e opiniões falsas e cheias de ódio à velocidade da luz, vocês, leitores do Soteroprosa, pessoas dotadas de criticidade e refino analítico, estão mentalmente destinando-me frases como: “esse cara é maluco, traz esse tipo perigoso de comparação em tempos de cólera!”... e: “em pleno século XXI, esse Antonio Danilo está contestando o valor da democracia?”... ou, por fim: “está fazendo uma exaltação boba às ditaduras, é isso? Se houvesse uma aqui, ele nem estaria podendo expondo essas opiniões!”.
Realmente, nosso tempo tem-se mostrado tão obtuso e tomado pelas desesperanças, que a ironia passou a ter difícil recepção mesmo entre muitas pessoas de inteligência acima da média. Poxa, minha gente, tanto obscurantismo na terra da mamadeira de piroca acaba queimando nosso estoque de bom humor, não é mesmo?! Mas, enfim, vamos lá! Vez ou outra eu tenho prazer em lembrar de quando, diante da contestação de um odiento leitor lavajatista favorável às barbaridades e atropelos jurídicos do então juiz Sérgio Moro no famigerado processo do Sítio de Atibaia, pelo qual o ex-presidente Lula fora condenado em primeira (neste caso, pelo próprio Moro) e segunda instância no tocante a determinada matéria de seu blog, o jornalista Reinaldo Azevedo respondeu ao incauto que democracia é isso mesmo, é uma construção constante e muitas vezes dolorosa, um processo cotidiano, mas necessário. E, completando a resposta, afirmou que não se pode condenar alguém atropelando os ritos processuais e desconsiderando a falta de provas somente por convicção de que se estaria a fazer a coisa certa em favor da população, sob pena de contribuir com a destruição do Estado democrático de direito.
Agora diluindo a fantasia na realidade, o que é sempre um processo áspero e traumático, e comparando a autoritária China às democracias europeias, no que tange à crise do coronavírus, vemos que as nuances da realidade nem sempre permitem que a percepção de pares opostos com os quais a civilização ocidental construiu sua lógica binária de observação ao longo da história, algo denunciado por grandes filósofos rebeldes, de Nietzsche a Derrida, seja suficiente para escaparmos da fantasia ideológica própria dos discursos normalizadores da chamada opinião pública.
Analisemos esse atual quadro de crise da saúde de dimensões globais sob a contraposição entre democracia versus autoritarismo, sem, no entanto, cairmos no sedutor binarismo acima referido. Pois bem, comecemos por perguntarmos uns aos outros quais dados nos permitiriam afirmar que a condução do combate à disseminação do coronavírus na China tem sido todo ele um processo de viés autoritário? O fechamento, pelo governo central chinês, da província de Wuhan seria um exemplo de uma política antidemocrática? Certo, mas atualmente diversos países ocidentais, todos estes considerados democracias, também têm fechado divisas e fronteiras, e, em sendo assim, cabe o questionamento: esses países viraram autoritários ou foi a China que agiu democraticamente desde o início da crise?
Outro ponto a ser levantado nessa observação pode ser o do chamado Estado de calamidade, mecanismo comum às mais diversas democracias que por sua vez permite que seja decretado o Estado de sítio e que, assim, possa ser cerceada a liberdade individual de locomoção, dispositivo este já acionado pelos governos de países como a Itália e a França, na atual conjuntura, permitindo que seja aplicada multa ou até decretada a prisão a quem for pego nas ruas sem um motivo considerado urgente ou relevante. Certamente, num regime autoritário isso se dá de maneira muito menos cerimoniosa. Mas não nos esqueçamos de que o preço imposto ao PC da China pela abertura às relações comerciais com o Ocidente, a partir dos anos 1970, foi certo respeito, por parte do governo oriental, mesmo que limitado, a preceitos típicos do Estado democrático de direito, a exemplo de um razoável grau de sujeição à responsabilização diante das regras do direito público internacional e, consequentemente, a impossibilidade de praticar um absoluto desprezo pelos direitos humanos. Portanto há, sim, algum grau de prestação de contas do governo chinês à opinião pública internacional, e se assim não o fosse, estaríamos falando de um regime totalitário como o da Coreia do Norte, o que em absoluto não é o caso.
Por outro lado, quando o brilhante pensador italiano Giorgio Agamben, em sua clássica obra Estado de Exceção, afirma que a evocação dos valores democráticos por parte das democracias ocidentais como justificativa para práticas altamente autoritárias ou despótica faz com que possamos perceber a democracia como um corpo vazio de conteúdo, algo como um significante vazio, nas observações dos igualmente brilhantes Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, e enxergar cada país como uma construção histórico-social antes orientada mais ou menos por valores e procedimentos democráticos em cada contexto específico, nunca como a própria personificação de uma substância democracia em sua forma pura.
Exemplificando com situações reais de maneira a simplificar o raciocínio exposto até aqui, quando o sistema público de saúde chinês realiza um trabalho eficiente e salva milhares de vidas em um tempo surpreendentemente curto, considerando-se o início do quadro epidêmico comunitário local, o governo daquele país está fornecendo à sua população um direito humano essencial, o direito à saúde e à própria existência. Isso pode ser visto como algo associado à democracia, já que está gerando a igualdade de oportunidades em relação à preservação de um bem, um bem imaterial e imensurável, o maior de todos.
Segundo esse raciocínio, pensemos agora no fato de que, quando um norte-americano precisa se desfazer de bens materiais conquistados através de muito trabalho para pagar por um teste e um tratamento contra a doença desencadeada pelo coronavírus, a Covid-19, o Estado norte-americano está agindo, ou deixando de agir, justamente no sentido de negar a seus nacionais a igualdade de oportunidades numa esfera societal relevantíssima, ou seja, está possibilitando friamente que parte desses indivíduos perca o direito a seu bem mais elementar e ao mesmo tempo buscando legitimar tal postura através do discurso artificialmente atravessado pelo feixe da democracia enquanto grande valor norteador da nação. A meu ver, esse exemplo e o de “exportação” da democracia à base de mísseis e bombas, noutros termos, a ação e o discurso norte-americano acerca de suas invasões imperialistas ao redor do mundo, ao longo do século XX e no atual, enfim, não poderiam ser exemplos postos ao lado da democracia enquanto arcabouço legal e moral.
Se as exemplificações acima não permitem afirmar que, assim como a China não pode ser vista como a encarnação perfeita de uma ditadura, tampouco os Estados Unidos devem ser concebidos como a própria entificação da democracia, da mesma forma seria imprudente afirmarmos que um país governado por um partido único e sem canais relevantes de manifestação das forças políticas de oposição pode ser concebido como uma democracia, tal qual outro onde é possível que alguém que ingresse na justiça contra uma grande corporação ou mesmo contra o Estado e tenha possibilidades reais de ganho de causa seja uma ditadura. No entanto, as nuances relacionadas a 1) procedimentos e dispositivos democráticos de acesso à justiça e à própria configuração do processo de escolha dos governantes; à 2) possibilidade mais ou menos igualitária de aquisição de um bem Y (material ou imaterial), partindo-se de uma situação de igualdade X; à 3) liberdade de imprensa e de mobilidade dos seus cidadãos; ao 4) livre acesso a canais regulares e consistentes de oposição ao governo, dentre outros elementos, são aquilo que, na prática, configura o significante vazio democracia em cada contexto dado.
Voltando à questão do grau de eficácia de um conjunto de ações no combate à pandemia provocada pelo coronavírus numa democracia e numa ditadura, a mim fica claro que o problema é de narrativa e não tem sido posto à mesa de modo correto. O preço a se pagar pela repressão não compensa o risco de vez ou outra instituições democráticas cometerem erros, mesmo quando estes forem muito graves. Cabe aqui ressaltar que, à parte todo véu democrático que cobre os países ocidentais, países como o nosso, em que o aparelhamento de órgãos policiais e judiciários como meio de facilitação de promoção de determinada elite política em detrimento de outra, mais precisamente a não separação entre o Estado e determinado grupo político promovida e sedimentada pelo boçal casamento entre bolsonarismo e lavajatismo, enfim, já não podem ser enquadrados como democracias exemplares. Para efeito de comparação, ao menos em linhas gerais, o mesmo não pode ser dito em relação aos Estados Unidos, e aqui muito mais pela força de suas instituições que pela sanha bárbara do atual ocupante do maior cargo público do país.
Sou forçado a concluir que, como o governo de extrema-direita brasileiro tem se comportado diante dessa pandemia de maneira delinquente e até perversa e tem cometido vários outros atos antidemocráticos desde que entrou em cena, em 2019, fico com aquela péssima sensação de que não temos mais nem uma coisa nem outra, noutras palavras, nem um grau forte de democracia, como o dos países ocidentais desenvolvidos, nem tampouco a eficácia do governo chinês para conter a epidemia em seu território, muito longe disso. E o interessante disso tudo é que esse governo é tão incompetente, mas tão incompetente, que consegue queimar sua única peça respeitável entre os seus ministros, o comandante do Ministério da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que tem se comportado até aqui como um diligente e correto ministro da saúde, tão correto a ponto de continuar buscando fazer seu trabalho com seriedade mesmo tendo um chefe sociopata fazendo de tudo para atrapalhá-lo.
É, para além de qualquer discussão acerca de coronavírus, democracia e ditadura, parece-me mesmo é que o Brasil é sempre um ponto fora da curva, para o bem e para o mal – ultimamente, muito mais para o mal, convenhamos...
Referência
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
Referência da Imagem:
https://www.archdaily.com.br/br/933151/china-constroi-hospital-em-10-dias-para-combater-coronavirus