É meio que óbvio confiar na linguagem, assim como em suas costuras e contornos, além de toda sua flexibilidade, já que nos ensinaram assim desde sempre. Se existe algum traço de desconfiança, alguma mancha envolvida, o problema nunca é profundo, nunca é a linguagem enquanto tal, mas sempre um fator externo, como a presença de alguém mal caráter, mentiroso ou malvado. A palavra é a ferramenta preferida em nosso cotidiano, naquelas conversas de corredor, envolvendo fofocas, comentários, críticas, ou até mesmo aquela voz interna que brota dentro de mim quando leio um livro ou quando tento resolver algum problema pelo caminho. O ponto é... acreditamos muito nas ficções criadas por esse pacote confuso de significantes que chamamos de linguagem, sejam elas histórias, notícias, teorias, e tantas outras formas de malabarismo verbal. Ser homem também é acreditar nessas ficções, é acreditar que “penso, logo existo”, apostando todas as minhas fichas em um fundamento sólido que define minha própria identidade. Posso duvidar de tudo, até mesmo do chão que sustenta meu corpo nesse exato instante, ou das pessoas que compartilham comigo do mesmo espaço, mas não posso duvidar de que “SOU ALGUÉM”, de que tenho um Cogito, uma identidade.
Ser homem é acreditar no poder da palavra, na sua capacidade de criar mundos que jamais existiram, assim como a nostalgia de uma solidez perdida. Ser homem é ter uma identidade fixa desde o começo, é saber quem se é, ou seja, ser homem é estar inscrito numa cadeia previsível de signos, é acreditar que um fluxo de experiencias jamais é aleatório, ou estranho, mas segue um caminho bem definido, com fronteiras claras. Embora tudo aqui pareça muito estável e consistente, lançar o “Eu” dentro de uma conversa qualquer, como se fosse uma cartada numa mesa de poker, não é sugerir uma essência, mas uma historinha funcional, conveniente. São raras as situações que ameaçam a solidez desse tipo de história, são raros os instantes que comprometem toda a firmeza do meu mundo, o que em filosofia recebe vários nomes, como “angústia”, “corpo sem órgão”, “encontro”, “evento”, além de muitos outros por aí. Quando “isso” escorre pelas brechas do cotidiano, quando o estável perde alguns traços de consistência, e nossa identidade experimenta um pouco de labirintite, não temos nem sequer tempo de aproveitar esse instante, já que imediatamente algum especialista aparece e conserta a “falha” produzida, remendando o buraco no tecido da minha própria experiência, como acontece com Psicólogos, Sociólogos, Assistentes Sociais, etc. Ou seja, na maior parte das vezes o meu "Eu" não apenas é acolhido pela linguagem, e preservado de todo o risco possível, mas também é visto como um pedaço de rocha sólida e confiável, ou até mesmo uma essência que repousa nos bastidores da minha própria vida, ao menos é assim que acontece com o Homem, aquele clássico, o que tem pênis.
Com a mulher, ao contrário, algo estranho acontece, como se alguma coisa interrompesse a solidez e consistência daquela rede de significantes que chamam de “Eu”, assim como compromete a linguagem associada a ele. Todo mês as palavras encontram um obstáculo pelo caminho, uma barreira que compromete qualquer tipo de ficção. Todo mês é confrontada com um corpo que transborda, mancha, sangra, sendo um tipo de incomodo persistente, ainda que tentem limpar aquele vestígio de sangue no azulejo branco desse banheiro metafórico que é a vida. Mas é claro... É impossível passar um pano, ou mesmo produtos químicos como ideologias líquidas, já que essa mancha sempre esteve ali e sempre continuará lá, não importa o quanto você esfregue, lave ou enxague. O problema não é o produto usado, muito menos a força aplicada no local, mas a realidade em si mesma, carregando uma mancha que atravessa todos as suas dimensões. Essa mancha sugere um corpo que não é histórico, econômico, biológico, nem nada do tipo. Esse pedaço de matéria é uma combinação curiosa de todos os fatores imagináveis, podendo ser definido apenas pela sua indefinição, por aquilo que escapa, rompe, frustra. Essa característica transbordante é aquilo que na teoria lacaniana se chama de real. O real não é apenas o limite da própria significação, não é apenas aquilo que não pode ser nomeado, mas principalmente é o que transborda, excede, comprometendo a pureza e a consistência de tudo ao redor, embora também seja um campo de possibilidades, ao menos é o que Badiou sugere. Em termos lacanianos, dizer que “a mulher jamais existiu” não é apenas sugerir a sua exclusão do simbólico, da linguagem, mas também é sugerir a sua fuga de qualquer tipo de registro ficcional, indo além de qualquer arranjo conveniente, ao mesmo tempo que resiste a toda forma de enquadramento. A mulher, nesse sentido, é a “mais valia” do homem, aquilo que o machismo não conseguiu simbolizar, ou seja, o restante, o excesso, o real. Por esse motivo o feminismo é tão combatido, já que mostra os limites da conveniência masculina e as fronteiras e a fragilidade da sua própria linguagem.
Sem dúvida, o machismo pode ser visto como um discurso, ou como um aglomerado de protocolos disponíveis, embora essa não seja minha opinião pessoal. Já o feminismo, ao contrário, jamais pode ser pensado como um artificio de linguagem, como se fosse apenas uma manobra interpretativa como qualquer outra. O feminismo não é uma interpretação do mundo, mas justamente aquilo que a interpretação não capta, o excesso que foi deixado de lado, o transbordamento que tentam evitar. E se, por acaso, você é um foucaultiano, e entende a verdade como uma forma de saber, logo o feminismo seria o oposta da verdade, sendo o próprio circuito do desejo, com toda sua montanha russa embutida. O corpo da mulher, aquele que todo mês sangra, acaba sendo revolucionário, de certa forma, e não apenas porque lida com a dor e desconforto, mas porque precisa reavaliar mensalmente sua própria identidade.
Muitos acreditam que os homens dominaram boa parte da história até aqui porque eram mais espertos, ou mais poderosos, mas é justamente o contrário. O privilegio masculino, e a sua capacidade de ganhar destaque, talvez tenha surgido de uma pura e transparente estupidez, já que sempre acreditou em suas próprias ficções. Acreditavam que eram reis, pais, presidentes, papas, e tantas outras historinhas infantis. Agora que as circunstâncias mudaram, ou começam a mudar, e a linguagem perde a sua sedução de antes, a estupidez machista e a fé inconsciente na linguagem perdem também seu espaço. Quem assume o centro do palco agora não é um novo significante (o Pai, o Marido, o Rei), uma nova cadeia de referências, mas sim uma espécie de movimento, um tipo de vácuo ocupado cada vez mais por grupos que buscam ir além, que buscam novas possibilidades. O feminismo é revolucionário porque não existe, porque desafia a própria existência e suas alternativas, pressionando as fronteiras do possível. Isso não significa, claro, mais felicidade... nada disso. Entrar no campo do desejo é um risco, ainda que venha acompanhado de tantas novas experiencias. Não é por acaso que muitas conservadoras tentam fugir desse terreno pantanoso, tentando ao máximo preservar a falsa solidez.
Fico imaginando Damares... sim, uma mulher!! O quanto deve ser difícil sustentar a ficção do seu próprio “Eu”. O quanto todo mês ela precisa lavar o tecido manchado da sua própria identidade, ocultando de si sua própria “mais valia”, seu próprio excesso. O custo psíquico de manter todo esse “Eu” operando é insuportável, eu acredito. No caso de Bolsonaro, um homem, ao contrário, é o movimento mais fácil do mundo, já que desde criança acreditava que era alguma coisa. E agora, como presidente da República, essa estupidez é elevada até a decima potência. Talvez um dia Damares acorde no meio da noite, de repente, e não queira mais participar da mesma peça que sempre participou. Talvez um dia perceba que o custo de preservar um “Eu” intacto e funcional a todo instante pode ser um caminho sem volta. Talvez o corpo de Damares seja revolucionário, embora sua linguagem queria acreditar em um conservadorismo que nunca existiu. Talvez, e só talvez, toda mulher seja revolucionária, mesmo quando é conservadora, mesmo quando se apresenta como “recatada e do lar”, mesmo quando é uma dona de casa dedicada e disponível. Alguma coisa sempre excede, escapa e vai além, ainda que venha no formato de um liquido vermelho que escorre por entre as pernas.
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