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O FAROL X O CORINGA: QUEM É MAIS INSANO?





É muito fácil descrever coisas que apresentam contornos claros, como um carro numa rua ou uma árvore em um parque, mas quando se trata da arte algo escapa, transborda, levando o espectador a um terreno novo, a um outro tipo de arranjo de experiências. Descrever “o Farol” acaba sendo um esforço inútil, se não completamente impossível, já que ele não é um simples filme, ou um objeto cinematográfico qualquer, mas uma completa experiência, um verdadeiro mergulho em algo mais profundo. Até aqueles que nada entendem de cinema, nem mesmo termos técnicos ou coisas do gênero, sabem (ou intuem) que existe algo “a mais” nessa obra, sendo um filme confeccionado com perfeição em cada detalhe, desde o roteiro, passando pela edição, e chegando até a performance dos próprios atores. Um filme, de maneira geral, é um grande todo, uma pintura completa em que cada parte é conectada entre si, formando uma coerência difícil de nomear. Como separar a trilha sonora da edição? Ou a performance dos atores e a fotografia? A experiência é vivida como um todo, jamais em partes, ao menos é assim que percebemos seus contornos, como é o caso com o filme “O Farol”. Ele com certeza já tem um lugar reservado na minha estante imaginária de grandes clássicos do cinema, bem ao lado de “Luzes da Ribalta”, “A terra treme”, “Rashomon”, “O rei da comédia” e “a viagem de Chihiro”.


Como se define uma boa direção? No geral, um filme bem dirigido é uma obra tão bem costurada que suas costuras nem sequer aparecem, tornando a experiência espontânea e eficaz, acompanhada assim de uma completa imersão. Por outro lado, os diretores pretensiosos, aqueles que querem mostrar o tempo todo suas digitais, carregam o filme com um tom artificial, apressado, quase como se fosse um ator no palco forçando um papel que não funciona muito bem, no limite do exagero. Se você para no meio do filme e pensa sobre sua fotografia ou trilha sonora, ou talvez sobre a forma como o ator gesticula ou organiza suas falas, com com certeza alguma coisa não deu certo. Normalmente, quando o filme é bem produzido ele é um todo bem costurado, tendo cada detalhe no lugar certo, criando assim uma experiencia espontânea e indescritível, um completo mergulho de corpo aberto. Sem dúvida, depois que o filme termina você pode dissecar sua superfície, procurando talvez pelos fragmentos (figurino, direção, fotografia, etc), mas isso apenas é um esforço feito depois que tudo já foi experimentado.


Saindo um pouco da parte técnica, em "O Farol" a narrativa é cheia de interpretações, uma abertura de possibilidades, como é possível perceber na referência ao último trabalho inacabado de Edgar Alan Poe, “The Light-House”, assim como a referência à masculinidade tóxica, à mitologia grega, além de muitas outras histórias místicas. De qualquer forma, dizer o que o filme é, como se a sua verdade fosse algo exposto, flutuando em sua superfície, ou disponível para alguém esclarecido, é perder de vista o seu principal compromisso. Existem dois tipos de filme no universo cinematográfico: 1) aqueles que são simples meios que transmitem alguma mensagem, sendo meras pontes que expressam alguma coisa e 2) existem aqueles filmes, ao contrário, que não são meios, mas um fim em si mesmo, ou seja, filmes que se concentram no próprio processo estético, no proprio movimento de costura e criação das cenas. Nessa segunda categoria fazem parte filmes clássicos como “2001: uma Odisséia no espaço”, “Melancolia” ou “Veludo Azul”, além do próprio filme “O Farol”. A pergunta sobre o que isso representa, ou aquilo significa, acaba sendo quase um desrespeito, uma recusa em observar a forma como a estética é construída e, principalmente, experimentada.


O tema da loucura é uma constante na trama de “O Farol”, o que lembra bastante o filme "Coringa" de Todd Phillips. Apesar das semelhanças, a experiência da loucura no "Coringa" é sentida de forma distanciada, como um espectador que assiste aos detalhes do que acontece com Arthur Fleck, ainda que se envolva na trama. “O Farol”, ao contrário, se torna uma experiência de completo envolvimento, de pura imersão, quebrando o abismo clássico entre espectador e obra ou publico e filme. O que existe é uma pura continuidade de vivências, nada mais do que um movimento contínuo que contagia a todos. “O Farol”, por ter sido filmado em preto e branco, além simular a resolução de câmeras antigas, no formato de um quadrado, ao contrário do padrão widescreen, cria ao mesmo tempo uma atmosfera claustrofóbica interessante, além de uma trilha sonora perturbadora e nada harmônica, fazendo do "Farol" mais do que um filme, chegando ao ponto de ser uma pura experiência. Apesar de ter uma história cheia de diálogos, basicamente entre Willem Dafoe (Thomas Wake) e Robert Pattinson (Ephraim Winslow), tudo isso dentro de uma casa mal iluminada, o espectador é sugado pela trama, tendo ao final nada mais do que um sentimento de duvida e frustração. Da mesma forma que os personagens, o espectador presencia um turbilhão de emoções, todas elas simultâneas, passando pelo medo, raiva, inveja, ressentimento, prazer, alegria, além de outras sensações que talvez ainda nem sequer tenham um nome, como na cena final quando Ephraim Wislow (Robert Pattinson) finalmente encontra o tão desejado farol e observa seu interior.


Em “Coringa”, logo ao final, quando as luzes do cinema acendem, todos tem uma interpretação na ponta da língua apenas aguardando o momento certo de cuspir, já que o filme foi observado, analisado e, claro, interpretado. Já no Farol, ao contrário, por ser uma pura experiência, e nada menos que isso, o espectador não apenas participa da trama, como se dissolve nela, terminando o filme sem folego e confuso, quase como se compartilhasse do destino dos personagens. Ao contrário do “Coringa”, "o Farol" não é sobre a loucura, como se fosse apenas um tema ou objeto de estudo, mas todo ele é construído dessa forma, ou seja, o filme inteiro é "louco", desde sua fotografia escura e contorcida, até sua musica nada harmônica e desconfortante. Em "Coringa" os cenários continuam mantendo sua coerência, da mesma forma que a direção e a trilha sonora. Os instantes de loucura transbordam basicamente pela ótima performance de Joacquin Phoenix, não indo muito além disso. Em “O farol”, ao contrário, a loucura transborda por cada centimetro das cenas, muito além das performances também excelentes, e dignas de Oscar, de Willem Dafoe e Robert Pattinson. O cenário, a trilha sonora, a fotografia, a edição, todas participam de um grande retrato cinematográfico, uma verdadeira experiência. São poucos filmes capazes de sugerir algo tão profundo assim.


REFERÊNCIA DA IMAGEM:


http://www.itaucinemas.com.br/filme/o-farol

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