- Pai, a água do mar não cairia da terra nas bordas da terra... – Diz minha pequena Lóri numa noite de dezembro, em Olinda, criticando uma ilustração terra-planista e continua – porque existe gravidade.
- Se tu reparar, a sombra do lápis sobre esse papel ... – Comenta um amigo sobre a lógica do movimento do sol se a terra fosse plana, enquanto bebíamos e escutávamos música popular brasileira, pop-rock, punk, hardcore, pagode e samba.
“A terra não é plana, eu vi”, diz o atual ministro da Ciência e Tecnologia no Brasil, em matérias exibidas por meios de comunicação. Curiosamente, minha filha, de oito anos, estava certa. Correto? Sim, segundo o “chefe” da Ciência no Brasil, indicado para ocupar o Ministério da Ciência pelo presidente Jair “Messias” Bolsonaro.
Achei muito engraçado que o próprio ministro indicado por Bolsonaro tenha se “posicionado”. Afinal, ele é um especialista: um astronauta! Ele saiu da terra! Diferente de meu colega do exemplo e da minha pequena Lóri, que sempre me enche de orgulho com seus oito aninhos e essa abertura para o mundo. Mas por que, então, falar de especialistas e astronautas?
Porque estamos diante de um momento político que, ao mesmo tempo, é também cotidiano (e quando não é?). Minha filha de oito anos costuma pegar meu celular e baixar aplicativos para observar constelações no céu. Ela falou sobre terra-plana aleatoriamente, como já falei noutro post. Em suma: estou diante de uma filha da geração Z (geração dos que nasceram nos últimos 20 anos, na “era da internet”); entre parentes e colegas de posicionamentos políticos diversos e que discutem sobre “terra-planismo”.
Em segundo lugar, falar com especialistas de uma área sobre outra área é o que realmente importa aqui. Como nós, não astronautas ou membros do governo, do alto escalão, da Nasa etc., podemos acreditar que a terra é plana ou redonda? “Porque devemos confiar nas instituições!”, diria o filósofo e antropólogo Bruno Latour num livro lançado recentemente pela Editora Vozes.
Minha filha, Lóri, confia em aplicativos de celular e no Animal Planet; já o colega da noitada curtindo música, confia em youtubers e sites de teoria da conspiração. Eu e a maioria de meus colegas confiamos, pura e simplesmente, na Ciência. A diferença entre nós todos/as é que dispomos de testemunhos e informantes diferentes e, para piorar, nós acabamos escolhendo entre narrativas sem provas científicas e outras com tais provas para “misturar” nossos valores e, com essa mistura, afirmamos: “terra-plana é coisa de bolsominion”. No entanto, parece que ao fazer isso, ao menos nós, não terra-planistas, nos apressamos demais, não percebendo que estamos diante de uma situação muito rica. A saber: estamos diante de uma alteração no hábito de confiar cegamente na ciência moderna, como se ela, de fato, ao suprimir Deus do jogo a partir da modernidade européia (transportada para as colônias), nos oferecesse uma alternativa de existência melhor que as outras, como se as questões de neutralidade, objetividade e subjetividade resolvessem nossos problemas existenciais. Não, não resolveriam.
O comentário do ministro Marcos Pontes, no entanto, vem dar “uma tapa sem mão” na cara de quem acredita em terra-plana. Não apenas porque Pontes foi um astronauta muito antes de ser ministro e que, portanto, esteve “lá, fora da terra-plana”. Pontes é também “do governo”. Nosso veterano dos céus, não teria credibilidade? Eis a questão: confiar em instituições está além de confiar em governo (que entra e sai); está além de “esquerda” e “direita”, está além de “ideologia” e, arrisco, depende justamente da relação que estabelecemos entre as gerações (daí ter falado de geração Z).
Dispomos de tecnologias que não existiam há décadas atrás. Minha Ló com certeza vai dar um “banho” num adulto que esteja apenas agora tendo contato com aplicativos e internet. Sem dúvida. E é justamente este o ponto que acho muito interessante: como estamos passando de uma geração para outra a confiança nas nossas instituições? Esse é um assunto chave: acho que é o que tem acontecido em toda arena política: as pessoas estão narrando coisas de novas maneiras, alterando definitivamente a relação que temos com o nosso “passado”.
Quando minha namorada comenta que sua professora é especialista em Ditadura Militar, ela me diz que esta mesma professora acessa “o passado” por meio de uma tecnologia que mudou completamente o modo de gerir a sociedade noutra época: a escrita. A escrita (textos, documentos, arquivo) é justamente o que fazia com que um acontecimento fosse documentado e que, assim, servisse para passar de uma geração para outra, a prova de que algo aconteceu. No entanto, quando novas gerações decidem contestar as “narrativas” como apenas ficções, ligou-se o “salve-se quem puder”: não temos mais provas e evidências para nos basear, apenas narrativas. Pior, narrativas que não se aproximam de uma boa narrativa ficcional, como os filme Bacurau ou Parasita que, segundo nosso colunista Thiago Pinho, narram de modo distinto a relação entre “classes sociais” num “mundo” capitalista. É esse tipo de narrativa que nos permite “pertencer a algum lugar”, via arte: mas quando a realidade é “mera ficção”, por que continuamos gastando tanto tempo e bytes preocupados em convencer as pessoas sobre verdadeiro e falso? Acho que outro caminho precisa ser criado. Uma nova alteração deve ser feita para redefinir um mundo em comum, a partir de novos acontecimentos, não das releituras constantes do passado ou do presente. Como construir algo novo para por fim à guerra de narrativas?
Fonte da imagem: site ovnihoje.com. Disponível em: https://www.ovnihoje.com/2017/08/29/terra-plana-um-absurdo/