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A represália bolsonarista e a resistência da temática feminista no cinema de urgência em " vida

Atualizado: 14 de abr. de 2024




Por Diandra Rocha [1]



Frente a uma vertiginosa crise democrática, o Brasil de 2019 enfrenta um cenário em que a expressão artística corre risco e tem sido constantemente atacada. Um exemplo disso é a Ancine, que barrou a exibição de alguns filmes brasileiros pelos seus servidores, sendo Um deles, A vida invisível , do diretor Karim Aïnouz.

A reação da Ancine estabelece uma relação direta com as novas formas de representação que estão sendo assumidas pelo atual governo brasileiro, mas não só isso. Um dos motivos pelo qual filmes como A Vida Invisível, Bacurau e Marighella foram censurados também tem a ver com as suas temáticas.


O filme A vida Invisível aposta numa ambientação que retrata a história de duas irmãs, que nos anos de 1950 tiveram suas vidas separadas. Numa troca de correspondência elas contam uma para outra sobre suas trajetórias na vida adulta. Sem saber se as cartas estavam realmente chegando ao seu local de destino ou não, elas relatam seus anseios, mágoas e vivências.

Os relatos das irmãs Gusmão penetram no tecido social brasileiro, vez que essa é uma sociedade fundada pela dominação masculina e pelas relações de poder entre homens e mulheres. Relações desiguais e que persistem desde antes dos anos 1950 até os tempos atuais, mesmo que a contemporaneidade para o feminismo seja um período de transição e de avanços nas conquistas sociais das mulheres.

A começar por Guida (Julia Stockler), mãe solo que inicia uma nova vida quando descobre sua gravidez e é expulsa de casa pelo pai, e Eurídice Gusmão (Carol Duarte/Fernanda Montenegro), que permanece por anos num casamento arranjado, engravida e persiste no sonho de reencontrar sua irmã, ir para uma escola de música e ser uma pianista renomada. Vidas que se desencontram fisicamente, mas que possuem um elo não só familiar, mas um elo de representação social da realidade da vida de muitas mulheres.

Assistindo esse filme pude notar uma breve semelhança com o célebre livro da filósofa Simone de Beauvoir. Em dois volumes, Beauvoir irá interpretar a sociedade francesa, que há mais de 70 anos pode facilmente se encaixar nas leituras da nossa sociedade contemporânea.

A mulher casada, a mãe, a mulher independente, títulos e trechos que descrevem a sociedade cunhada no drama de Aïnouz e na sociedade brasileira. Dessa maneira o filme se apresenta na urgência do momento contemporâneo como denúncia a um sistema patriarcalista que por anos tem submetido a mulher em situações consideradas naturais e normais pela sociedade, entretanto as colocando num papel de subserviência absoluta. O filme, pois, descreve com facilidade, numa performance artística admirável, as mazelas do "tornar-se mulher".

Segundo Simone de Beauvoir, o casamento se apresenta de maneira radicalmente diferente para o homem e para a mulher. Podemos ver isso no casamento de Eurídice, que é estuprada por seu próprio marido, que não interrompendo o coito, mesmo sabendo que sua esposa não quer ser mãe aquele momento, a engravida duas vezes.

Numa relação que para o marido parece ser ótima, mas que, para ela, simula um cárcere de suas habilidades artísticas e de sua independência intelectual no bojo da sociedade - aliás, uma realidade pulsante para muitas mulheres que talvez nem consigam se reconhecer nesse ciclo de abusos justamente pela naturalização desses fatos.

A mãe, que pela maternidade realiza sua "vocação natural", pode ser notada na personagem Guida, que ao abandonar seu filho se questiona sobre o ato e é questionada pelos seus pares o motivo do abandono, até o momento em que ela decide voltar e pegar a criança da maternidade.

Seria, portanto, natural uma mulher ter um filho mesmo sem condições financeiras ou psicológicas para tê-lo? Seria uma condição natural da mulher se submeter a situações de constantes abusos (físicos e psicológicos) para ter um filho que não lhe é desejado? O que seria, então, ser natural? O que seria ser mulher ou ser mãe numa sociedade que dita normas e padrões acerca desses rótulos?

Pensar nessas questões é também subverter a regra do pensamento dominante, sobretudo atualmente, vez que a sociedade bolsonarista aposta numa realidade em que a família tradicional brasileira é posta em primeiro plano. Família essa que é composta por um núcleo patriarcal, com uma mulher e seus filhos submissos à dominação masculina.

Em A Vida Invisível não se vê a submissão completa dessas mulheres, mas se vê justamente a tentativa de fuga dessas regras, isto é, o questionamento destes fatos e suposto "destino". Fugas que por muitas vezes são podadas pelas circunstâncias dadas pela sua vida; questionamentos que nem sempre podem se concretizar pela condução das suas vidas.

Dessa maneira, Aïnouz não vence apenas prêmios honrosos na corrida para o Oscar, ele vence também o espaço da narrativa. Uma narrativa que foge da representação comum da família no cinema, pois a aposta aqui não é apenas a construção de um grande drama: há também um comprometimento social em bradar a situação da construção do papel das mulheres na sociedade brasileira.

As mulheres de Aïnouz são a representatividade da mulher que já não compactua os mesmos desejos da sociedade, que já não aceita mais as imposições a elas feitas e questiona. Infelizmente nos anos 1950, mesmo que houvessem rupturas de um pensamento hegemônico, não existia a prática do rompimento real dessas mazelas. Mas é ali que surge o início de um pensamento crítico sobre a existência das mulheres numa sociedade que as subvertem, mas que dependa completamente de sua existência ativa permanecer dominante.

Defendo que A vida Invisível precisa ser exibido não só em protestos e em locais públicos: o filme nada mais é que uma manifestação política e de resistência. As mulheres que não tem acesso ao cinema em suas cidades interioranas precisam saber da existência dessa pérola do cinema brasileiro, pois há nele um grande potencial de reconhecimento. Se reconhecer numa narrativa é totalmente importante, sobretudo numa obra altamente qualificada e crítica como essa.


Defendo, pois, que se inicie um processo de construção de meios para que filmes como estes sejam acessíveis para todas as mulheres brasileiras que tenham interesse em compreender a situação das mulheres antigas e assim talvez, compreender minimamente sua condição atual e se ressignificar a partir daí.

A potência a qual me refiro também foi vista pela crítica cinematográfica, pela Ancine, pela equipe bolsonarista e pelo próprio presidente eleito. Eis o motivo a recusa. A arte urgente grita e não será o governo bolsonaro (e seus retrocessos) que pode calar essa voz que há tempos ecoa dentro de várias mulheres brasileiras a fora.

O cinema brasileiro foi e permanece sendo uma resistência artística fundamental para a construção e reconstrução de novas formas de pensamento. Ele não será um sistema autoritário que irá dificultar esse refazer constante, ou seja, essa reflexão crítica da nossa sociedade.

Pelo cinema brasileiro! Pela autonomia da arte! Pela autonomia dos corpos e mentes das mulheres brasileiras! Uni-vos.


[1] Estudante de letras da UFBA. Pesquisadora CNPq na área dos Estudos Culturais, com ênfase na Política Brasileira Contemporânea.


Fonte da imagem: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-249383/




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