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Uma semana na Maternidade Tsylla Balbino

No nono dia do mês de novembro de 2019 eu tive a experiência mais forte da minha existência. Por mais que se diga e repita por aí, trata-se de uma fala que nunca será um clichê. Naquele dia, ou melhor, naquela madrugada de sábado eu me tornei pai de um garotão lindo e saudável. Por si só, tornar-se pai já foi um acontecimento de uma grandiosidade indescritível. Não bastasse esse fato catártico em minha vida, acompanhar o seu parto e todo o processo de observação dele e de minha esposa numa maternidade pública, a mais antiga maternidade pública de Salvador, fundada em 1959, no governo de Antônio Balbino, e batizada em homenagem à então primeira dama, foi uma majestosa aula de vida. Compartilharei com vocês um pouco sobre a semana vivida por meu filho, minha esposa e eu na Maternidade Tsylla Balbino.


O meu primogênito nascera de parto cesariano. Minha esposa havia optado por tentar o parto normal, o chamado parto humanizado, mas a falta de dilatação necessária acabou fazendo com que a equipe médica tomasse a decisão de realizar a cesariana. Numa cirurgia de sucesso, realizada em cinquenta minutos por uma equipe muito ágil e competente, vi meu filho ser retirado da barriga da mãe e elevado por um casal de médicos aos sete minutos do sétimo dia da semana. Inerte e maravilhado, fui convidado por duas enfermeiras a cortar o resto do seu cordão umbilical. De tão nervoso diante do gigantismo daquele momento, só consegui cumprir a missão na quinta tentativa, e isto porque uma das enfermeiras me deu uma ajuda, segurando minha mão. É uma emoção realmente indescritível e imensurável.


Nasci em Salvador e antes de completar meu segundo ano de vida, meus pais me levaram para o interior do estado, onde tive uma infância materialmente confortável e cercada de amigos, familiares, cheia de liberdade e de natureza, como é típico da infância em cidades do interior. Quando eu tinha quinze anos de vida, eu, meus pais e o caçulinha da casa, meu querido irmão, que nascera lá em Antas, pedacinho de sertão dessa grande Bahia, retornamos a Salvador. Quando do regresso, ao contrário de quando da mudança para o interior, chegamos aqui numa condição social menos confortável, depois de termos sido atingidos por uma crise financeira, à época da instauração do Plano Real. Antes dela, a família havia chegado a possuir um patrimônio de considerável valor para os padrões locais, o que nos proporcionara certo conforto durante os anos no sertão. No regresso, nunca chegamos a passar por carência alimentícia ou penúria do tipo, o que, num país à época de miseráveis e que nos últimos anos retomou tal condição, já era quase que um privilégio, longe disso. Mas eu e meu irmão tivemos uma segunda metade de nossa adolescência materialmente difícil, sem os confortos aos quais nos acostumamos na infância e início da juventude.


Por si só, a queda acentuada no padrão material de vida de alguém já é uma grande lição que o mundo pode proporcionar a qualquer um, é onde um sujeito outrora pertencente a uma classe mais favorecida passa a olhar para outra classe, agora também sua, no dia a dia, em todos os sentidos. Na verdade, podemos nos arriscar a dizer que é nesse momento que muita gente passa a se dar conta da existência das classes sociais, a sentir na pele tal divisão da sociedade.


Você deve estar aí se perguntando: e o lance da maternidade, o que tem a ver com isso? E eu respondo na lata: tudo! Ser pai e acompanhar o processo de parto e primeiros cuidados numa maternidade pública, a mais antiga de Salvador, foi uma experiência com o afloramento da dimensão perceptiva da diluição das diferenças de classe, algo que fez com que eu passasse a pensar nelas já sob o prisma da negatividade objetiva. Noutros termos, afirmo com segurança o fato de que, se a mudança de um padrão material de existência para outro inferior é capaz de fazer com que enxerguemos as diferenças entre as classes através desse sentir advindo da imersão pessoal numa classe subalterna, mas ainda assim, a partir da experimentação dessa outra classe de dentro de suas casas, de trocas diárias nas ruas, dos ambientes escolares ou do trabalho, enfim, o convívio com pessoas das classes populares num ambiente de confinamento com excelentes profissionais, lugar em que todos têm a dignidade de um tratamento sistematizado sob protocolos de qualidade comuns, recebendo alimentação adequada e acompanhamento integral, apesar das limitações estruturais de muitas instituições geridas pelo SUS, é uma experiência radical de vislumbre de um mundo para além das classes sociais.


Aprendi na prática que o SUS é a definição mais bem acabada de socialismo realmente existente. Sim, entendo que o socialismo não deve ser visto somente como modo de produção condicionante de um sistema global de dimensões nacionais e mundiais e legitimado/reconhecido pela dimensão jurídica no plano nacional e internacional, a exemplo dos antigos estados soviéticos, Cuba, China etc. Socialismo, na prática, também se apresenta enquanto a reprodução de uma lógica e de um modo de produção na forma de experiências isoladas e reais já no seio do modo de produção capitalista, tais quais os sistemas de troca que constituíam o comércio medieval ainda no seio do feudalismo. Marx, Engels e muitos dos continuadores da tradição do materialismo histórico e dialético atestam essa lógica em seus escritos. Entendo o SUS como um experimento socialista, portanto.


Estamos falando de um sistema universal, com tratamento igualitário à totalidade dos pacientes, que opera sob protocolos comuns e que, mesmo com todas as limitações advindos de eventuais falhas no sistema de gestão, do excesso de demanda, do provável manuseio ineficiente do orçamento e das contingências derivadas dos efeitos dos grupos de pressões privados que orbitam seu entorno e às vezes penetram nos seus espaços via Organizações Sociais, as famosas O.S., e Fundações, ainda assim proporciona a igualdade e a dignidade à parcela mais pobre da população, quando consegue operar de modo razoável. Ora, o que seria o socialismo realmente existente senão um processo em aberto de não-mercantilização das relações sociais, de tornar o espaço do comum a base contra as relações humanas subordinadas ao capital e à busca desenfreada e inescrupulosa da lucratividade por parte de uma elite social? Para mim este tipo de experiência, talvez ainda mais que as de Estados hiper-burocratizados e autoritários vistos como modelos acabados, deve ser vista como socialismo.


Claro, a minha fala aqui é talvez uma simplificação demasiada. Mas falo de socialismo enquanto prática processual, enquanto caminho aberto e orientado por determinados valores, além, claro, do seu fulcro definidor, a apropriação coletiva dos meios de produção. E o SUS atende a este requisito também! Ele representa a reprodução do suporte à saúde coletiva a partir de bases horizontalizadas de gestão, orçamento e relação pacientes-profissionais de saúde de tipo democrática. Na Tsylla, por mais de uma vez, vi médicas sendo obrigadas de fato a respeitar os protocolos da enfermagem e prestar contas às coordenadoras enfermeiras, num processo de gestão compartilhada, não verticalizada, ao contrário do que ocorre em outras instituições, inclusive algumas do próprio SUS. Da mesma forma, o orçamento de lá, como das outras unidades públicas de saúde, sejam municipais, estaduais ou federais, obedece à lógica federativa, isto é, do compartilhamento de recursos entre os entes da federação, no modelo de partilha orçamentária imposto pela Constituição de 1988.


Por fim, também presenciei algumas vezes profissionais da referida unidade não somente conversando mas também se mostrando abertos a sugestões dos pacientes e acompanhantes, inclusive nos momentos de resolução de demandas que surgiam de maneira inesperada (sim, lá também tem suas carências estruturais!), ocasiões em que contaram com a solidariedade entre as parturientes para a condução de um bom parto e de uma boa recuperação. No pré-parto, minha companheira e outras gestantes, por exemplo, apoiaram-se umas nas outras em exercícios de dança para estimulação do parto normal, sob a orientação das enfermeiras. Por mais que, ao final, somente duas delas tenham conseguido parir de maneira natural.


É, se o SUS é uma experiência socialista, posso afirmar com segurança que a Tsylla Balbino é o SUS em estado puro. Estamos falando de um sistema e de um lugar que nos põem em contato vivo com o povo e que, por funcionar bem, apesar das contingências, faz com que enxerguemos esse mesmo povo como imbuído da dimensão genérica de humanidade, para além de sua condição de classe, de suas carências materiais e da carga de preconceito e estigma a qual muitas vezes carrega consigo. Na Maternidade Tsylla Balbino (MTB) não há pobres nem ricos, mas pessoas concretas que parem pessoas concretas compartilhando relações sociais concretas e despidas das limitações e muros impostos pela sociedade dividida em classes sociais. Entre o parto e a alta, o que há ali são pessoas que cooperam e saúdam o momento mais apoteótico da vida, isto é, o nascimento, a perpetuação da espécie. Fico muito feliz de meu filho ter podido vir ao mundo num lugar assim. E me esforçarei, enfim, para que os valores que preenchem tal instituição o acompanhem por toda sua vida.

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