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Um olhar crítico sobre a Democracia. Corremos riscos?

Na sua origem, a ideia de democracia, governo do povo (leia-se cidadão), da soberania popular, prestava-se à participação no poder, nas decisões e deliberações na ágora. Na Grécia, a democracia era direita, sem o filtro de intermediários eleitos detentores do poder.


A democracia evoca, em essência, a possibilidade de que o cidadão obedeça às leis que eles próprios criaram. Portanto, deve existir uma pedagogia, um certo hábito, um modo de vida. Em outros termos, na democracia política não deve existir vez para a apatia. A indiferença quanto aos destinos e as decisões que impactam toda uma coletividade é um ônus sem tamanho. Cidadania democrática é engajamento constante e necessário.


As democracias modernas são representativas. É impensável (até hoje) um modelo de democracia direta no qual todos os cidadãos interessados se reúnam, em um único local, para discutir e decidir sobre a construção e julgamento de todas as leis de um território. Em nosso exemplo atual, a maioria da sociedade escolhe os políticos, através do voto, num aspecto formal, para que representem suas vontades e ajam conforme suas necessidades. Essa é a esperança dos eleitores. Claro que na prática, num parlamento, as divergências e os conflitos são tão grandes que é impossível representar todos os desejos da população, mesmo que proporcionalmente. As escolhas sempre serão feitas conforme os mais diferentes critérios, incluindo jogos de poder e barganha.


As democracias modernas não se encerram na política. Hoje falamos em democracia social. A inclusão, a igualdade, não deve esgotar-se na política convencional e nem mesmo em espaços participativos e deliberativos, como conselhos e participação popular orçamentária, que certamente descentralizaram as arenas de poder político tradicional e incorporaram a sociedade civil, mesmo que ainda seja uma ínfima minoria. As pessoas desejam e querem melhorar suas vidas! Elas almejam o que não têm: um ótimo salário, educação de qualidade, merecido descanso, férias, menor jornada de trabalho, ou seja, demandas materiais práticas. Além disso, busca-se demandas que ultrapassam as necessidades puramente materiais, que é a luta por reconhecimento sexual, gênero, cor, etnia.


Nada mais natural, em uma sociedade liberal, como a nossa, na qual deve imperar a melhoria existencial do indivíduo, que as demandas pulsem infinitamente. Quem não é valorizado quer ser valorizado. Quem tem menos quer mais. Quem tem algo não quer perder. E assim por diante. Sempre haverá referências, comparações e o desejo de que as expectativas, infinitas, das pessoas sejam garantidas através dos governos.


Então, a ampliação da democracia, a social, não pode ser descolada do desenvolvimento capitalista. O capitalismo, historicamente, ao ampliar e massificar o acesso aos produtos, possibilitou e possibilita que mais e mais pessoas acessem os bens, mesmo que para isso uma pessoa tenha que sacrificar seu salário, trabalhar arduamente, abrir mão de lazer, e dividir 15 vezes no cartão a fim comprar um tênis na moda, um celular de última geração ou uma televisão de 50 polegadas. As propagandas incentivam e impulsionam, exageradamente, as pessoas a “comprarem felicidade”, o que gera um excesso de desejos desnecessários. Uma cultura da falta de comedimento! E quanto mais pessoas desejarem melhor, porquanto garante o funcionamento do sistema, das vendas, apesar das crises cíclicas.


Acontece que a democracia social está vinculada a um excesso, um plus, impulsionado pelo gozo infinito do desejo. O capitalismo não pode sobreviver se as pessoas não tiverem essa compulsão. Essa é a marca do consumismo. Esse incentivo a sempre ter mais e melhor, de forma não moderada, está em conjunto com a democracia social, ao menos do ponto de vista das demandas materiais dos mais carentes. Esse vínculo gera um outro problema: o individualismo.


“não há poder na terra que possa impedir que a igualdade crescente de condições leve o espírito humano à procura do útil ou que obrigue o cidadão a fechar-se em si mesmo. Daí esperar que o interesse individual venha torna-se, mais do que nunca, o principal senão o único móvel das ações dos homens" [1]


Em outros termos, o espírito de cidadania, o olhar aos concidadãos, tende a ficar comprometido devido aos interesses puramente privatistas, criando uma economicização das relações humanas. O risco incessante de buscar só prazeres materiais, como realização na vida, pode levar à desordem: “[...] o desejo de adquirir bem-estar se apresenta à imaginação do pobre e o pavor de perdê-lo ao espírito do rico [..]”. [2]


A sobreposição do social à política leva ao problema do isolamento. Ao isolar-me do outro, ao preocupar-me com questões primordialmente materiais ou por demandas de reconhecimento, independente da condição financeira, perco a dimensão da soberania popular: deixo de lutar pela política e seu aperfeiçoamento, não me preocupo com as decisões importantes que impactam diretamente nos rumos de minha cidade, estado ou país; delego a democracia só aos representantes e creio que irão resolver todas as questões.


Ao colocar a questão social (demandas por redistribuição ou reconhecimento) no pedestal, acima da política, todos nós assumimos o risco de abrir as portas ao desaparecimento da esfera dos conflitos, do debate, da ação política. É fundamental, uma condição sine qua non, lutar pela republicanização da democracia, buscar a melhoria das instituições representativas, judiciárias e executivas.


“[..] Se não houver uma visão abrangente do poder, a compreensão da coisa pública, o risco será pensar na distribuição esquecendo a produção, será perder de vista a questão do poder, a compreensão da coisa pública [...]”. [3]


Assim, caros leitores, a democracia não pode abandonar a política e idolatrar o social: deve incorporá-la. Qualquer governo que incite somente a distribuição material ou a defesa de políticas de identidade, sem criar um espírito político e republicano, está aberto a ser sequestrado por autocratas ou populistas eleitos. É preciso agir em favor de algo que transcende, que seja comum, um ethos, uma virtude política que deve aproximar-se do republicanismo e associativismo cívico evitando a despolitização.


“Podemos definir essa virtude: ao amor às leis e à pátria. Este amor, que exige que se prefira continuamente o interesse público ao seu próprio interesse, produz todas as virtudes particulares; elas consistem apenas nestas preferências. Este amor está singularmente ligado às democracias. Só nelas, o governo é confiado a cada cidadão". [4]


Até a próxima!


[1] TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracia na América. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1998, p. 245.


[2] TOCQUEVILLE, Alexis de. Democracia na América. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1998, p. 247.


[3] RIBEIRO, Renato Janine. A boa política: ensaios sobre a democracia na era da internet. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p.35


[4] MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Tradução Cristina Muracho. 3 edª. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.46


Link da imagem: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/577427-a-democracia-por-um-fio




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