O perigo das soluções simples!
- Alan Rangel
- 28 de out. de 2019
- 5 min de leitura

A Democracia, definida como um método político que elege elites políticas, segundo a definição do economista Joseph Schumpeter, pode ser resumida ao voto, num caráter minimalista. Esta definição, e tal forma de enxergá-la, pode ser utilizada por qualquer tipo de governo. Com o rótulo de governo aprovado pela maioria, populistas utilizam a fachada da democracia formal para chegarem ao poder e aí se manterem, cumprindo e exaltando a “vontade popular”.
Nada impede que espíritos antidemocráticos ascendam ao posto de representantes e minem o Estado Democrático de Direito, que deveria prezar, em essência, pelo respeito às instituições independentes, proteção aos direitos individuais e maior inclusão. A mentalidade autoritária pode implodi-lo, lentamente, dentro da legalidade, abrindo mão de golpes ou revoluções. Em outras palavras, é possível usar a letra da lei para minar o espírito da lei. Para Levitsky e Ziblatt “aqueles que denunciam os abusos do governo podem ser descartados como exagerados ou falsos alarmistas. A erosão da Democracia, é, para muitos, quase imperceptível“.[1]
Uma cultura política autoritária pode ser maioria em Estados democráticos. Autoritários exaltam ditadores, torturadores, atacam minorias e utilizam de jargões contrários aos avanços ocidentais, tratados e convenções internacionais de direitos humanos ou de preservação ao meio ambiente. De acordo com Mounk, “quando as opiniões do povo podem ser iliberais e as preferencias das elites se tornam antidemocráticas, liberalismo e democracia colidem”.[2] Ainda, segundo o autor, estamos presenciando uma Era de democracia iliberal ou democracia sem direitos, e do liberalismo antidemocrático, ou direitos sem democracia.
Mas devemos entender o que está por trás da ascensão de líderes que desejam o cesarismo: a fixação pelo poder absoluto. Elevada desigualdade social, desemprego, alta criminalidade, corrupção generalizada, serviços caros, são alguns, mas não todos, gatilhos que geram a revolta das pessoas na busca de soluções imediatas. Canalizar tais demandas é a chave dos populistas.
Em países com tradição ditatorial e autoritária, tanto à esquerda como à direita, os custos para perdurar os valores democráticos e liberais são maiores. Os desafios para superar a postura e a mentalidade autoritária são árduas, muito em conta de questões culturais fortemente arraigadas: escravidão, mandonismo, paternalismo, patrimonialismo, e outras tantas formas de comportamento essencialmente oligárquico, além de uma baixa distribuição de renda.
A racionalização do mundo moderno, com um sistema político e técnico cada vez mais complexo e sofisticado, insuflado por diversos inputs oriundos de setores da sociedade, fez com o próprio Estado ficasse impedido de dar conta de tudo. Outputs não agradarão a todos. Opções sempre serão feitas. E não é tarefa fácil a Estados de Direito, seja numa república, parlamentarismo ou monarquia lidar com o excesso de demandas. Afinal de contas, existem poderes e regras. Aprovar leis, orçamento e alocar recursos exige acordos, barganhas, coalizões multipartidárias e heterogêneas, uma disputa que aos olhos do cidadão mediano parece ser bastante morosa, complicada, e os resultados nunca serão plenamente satisfatórios. Norberto Bobbio, em o Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo, diz o seguinte: “a democracia tem a demanda fácil e a resposta difícil; a autocracia ao contrário, está em condições de tornar a demanda mais difícil e dispõe de maior facilidade para dar as respostas”.[3]
Por isso os que se sentem prejudicados, seja no nível econômico, cultural, religioso, sexual tendem a desacreditar no esforço civilizatório, do Estado moderno e liberal, que teve como avanços democráticos, o diálogo, a separação e independência entre poderes, os pesos e contrapesos, a terceirização da repressão e punição, com o devido sistema processual penal acusatório, convenções e acordos pautados por debates com atores plurais; além do desenvolvimento da especialização, tecnocracia e burocracia. Há, atualmente, de forma sintomática, um desgaste ou uma má vontade com as regras do jogo.
Surge o vírus do discurso populista! Contra a “velha política”, a demonização do judiciário, imprensa, ciência, sendo acusadas de inventarem “verdades subjetivas” convenientes a determinados interesses, como se fosse somente uma questão de perspectiva ou agenda política corrompida. A tônica é a desconfiança, a suspeita. São todos considerados inimigos do povo.
Apelar a alguém acima de toda a complexidade estatal, para tomar rédeas, com decisões simples e arbitrárias, é o furor de sociedades que abrem mão de liberdade pela segurança de ser governado por quem faz e desfaz normas estabelecidas, usando retóricas e palavras de efeito convincentes. Em regra, são atos de apelo emotivo, que excita instintos primários, sobretudo o medo. Eles, os autoritários, agem com a promessa de enfrentar o status quo, combater o establishment, e modificar instituições acusadas de carcomidas.
Atores populistas quando ascendem, uma vez eleitos, enfrentam diversas dificuldades para governar, negando as instituições; tentam impedir a rotinização do carisma, segundo o conceito do sociólogo Max Weber, pois buscam administrar de forma pessoal, permanentemente. Alguns presidentes têm preferido estabelecer conexões diretas com os eleitores, por exemplo o uso de plebiscito, com o objetivo de constranger os legisladores a votarem de acordo os interesses dos mandatários. Ou o uso da rede social virtual, como canal direto, extraoficial, com a população.
Por exemplo, Bolsonaro é o segundo presidente brasileiro que mais “canetou” decretos desde a promulgação da Constituição de 1988. Só perde para o ex-presidente Fernando Collor de Mello, que editou 268 decretos nos primeiros 150 dias de governo.[4] Os decretos presidenciais são atos unilaterais.
Lideranças discursam a multidões passionais, com sede de justiça, ou a grupos ameaçados ou frustrados, que perderam privilégios ou não se acostumaram com uma realidade contrária às suas expectativas de vida boa. Para o cidadão comum, os problemas sociais e existenciais podem ser resolvidos de maneira simplificada, com alguém acima do bem e do mal contrariando as leis; que apoie medidas extremas, inconstitucionais, e opere um suposto projeto de restauração, um passado idílico, ou, em outros casos, um futuro utópico, ajustado ao mundo atual, independente das peculiaridades existentes. Ora, pensar assim significa tenta reduzir o mundo factual a soluções fáceis, sem filtros, sem diálogo, sem paciência a mudanças lentas e graduais.
O apelo ao autoritarismo surge como fórmula mágica para amortizar ou eliminar as mazelas do dia a dia; basta achar um bode expiatório, conspirações de toda ordem, um inimigo de fácil detecção: imigrantes, minorias, esquerdistas, burgueses, partidos, ambientalistas, globalistas, anticristãos. Causa simples, soluções fáceis e superficiais! Eis o sedutor canto da sereia.
É duro aceitar um mundo falho, absurdo e inúmeras vezes inconveniente. Mas também é tolo e ingênuo crê que a confusão da realidade pode ser definitivamente explicada por formulações singelas e abstratas. Tomemos cuidado com as fantasias, pois elas podem ser a falência da civilização, que foi construída, lembremos, sob os escombros de muito sangue e crueldade.
É bom ter em mente que a resolução dos problemas sociais não é resolvida como passe de mágica, esta opção pode levar, cedo ou tarde, a uma barbárie generalizada, um retrocesso à falta de autocontrole a determinados impulsos ou instintos a-sociais; a um estado de natureza como regra, imperando a própria lei do mais forte.
De forma paralela, a Era da internet permitiu a externalização generalizada e cotidiana de uma barbárie mais ou menos contida, antes interiorizada no processo civilizador. A violência central não é mais entre Estados-Nação, mas entre grupos e pessoas.
Para finalizar, como disse o sociólogo Bauman, em Retrotopia: “o animal resta à espreita, pronto a eliminar a camada temivelmente fina de decoro convencional, antes destinada a ocultar o feio que a subjugar e conter o sinistro e o sanguinário”. [5]
Fonte da imagem : http://agazetadigital.blogspot.com/2018/01/abaixo-o-populismo.html
[1] LEVITSKY, Steven/ ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro? Zahar, p.17, 2018.
[2] MOUNK, Yascha. O povo contra a Democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, p. 29, 2019.
[3] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 13° ed. São Paulo: Paz e Terra, p. 63, 2015.
[4]https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-edita-recorde-de-decretos-desde-collor,70002855292
[5] BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, p. 21, 2017.