
“Eu nunca fui feliz um minuto sequer em toda a minha vida desgraçada”. O enunciado do personagem Arthur Fleck, protagonista do filme Coringa dirigido por Todd Phillips e estrelado de modo impecável por Joaquin Phoenix retrata a angústia de um ser que se descobre no fundo do poço e decide botar fogo em tudo ao redor numa crise insana de euforia e loucura.
O presente texto não tem a pretensão de analisar os aspectos políticos e sociais da obra fílmica, ou sequer visa compreender os efeitos da exaltação do anti-herói. Antes, gostaria de destrinchar o riso do personagem. Parto da compreensão de que neste riso inadequado está contido inúmeros elementos representativos da sociedade contemporânea. Para quem não assistiu ao filme um conselho: assista! Alguns spoilers podem aparecer eventualmente neste texto, mas em nada atrapalham a experiência do expectador.
Henri Bergson em seu ensaio sobre o riso e a comicidade (2007) explica que uma das características fundamentais do riso é o seu aspecto social e agregador. Rimos em contextos de diversão, bom ânimo e contentamento. Ao assistir Coringa (Joker) percebemos uma outra face do riso completamente diferente da expressa pelo filósofo francês. O riso no personagem se manifesta como expressão de uma doença mental, ele ri de modo desvairado em situações nada condizentes com a comicidade, seu riso é inapropriado e não corresponde com as suas emoções, não denota alegria, pelo contrário, a narrativa fílmica nos apresenta um protagonista extremamente angustiado, pesaroso e entristecido. Apesar disso, de modo contraditório, a mãe do personagem o apelida desde a infância de “feliz”.
É gradativa a transformação do palhaço e humorista Arthur Fleck em Coringa. A metamorfose se dá em meio a uma soma de violências sofridas pelo personagem e a sede por reconhecimento que não é abrandada pelo silêncio da plateia que não ri de suas piadas.
Coringa nos ensina muito. Nos comove e ao mesmo tempo nos incomoda. Em primeiro lugar, o personagem foi apelidado de Feliz embora seja uma pessoa extremamente triste, isso me fez pensar no quanto as redes sociais nos impulsionam a transparecer uma alegria “fake”, sorrisos abertos e mentes arrasadas, imagens bonitas e almas vazias, à beira da insanidade que ora se manifesta em massacres sociais, ora se apresenta em pequenas crueldades diárias. O culto à felicidade e a obrigatoriedade de estar bem o tempo todo é uma constante na sociedade do espetáculo.
Rir de alguma pessoa para muitos é apenas manifestação de humor inteligente e sociabilidade, no entanto, quando se ri do outro, em geral, o objeto de riso é ridicularizado, escarnecido e minimizado. Expor uma pessoa ao vexame é uma maneira de oprimir e subjugar. Talvez não haja violência mais sutil do que o escárnio. Quando um programa de TV transmite o vídeo de Arthur Fleck em sua apresentação de stand up é nítido o objetivo de escarnecer o personagem, há ali a representação da culminância de um projeto de vida fracassado que sempre é alvo de desprezo, piedade ou chacota. Arthur Fleck é denominado Coringa pelo próprio apresentador do programa. A essa altura a metamorfose do protagonista se dá por completo, ele, pela primeira vez enxerga a possibilidade de sair no anonimato.
O filme comove porque é muito nítido o declínio daquele sujeito, alvo de inúmeras violências familiares e sociais desde a infância. Talvez a violência social mais crítica e responsável pela total decadência do personagem se dá quando o programa de serviço social que presta apoio psicológico ao protagonista tem a verba cortada e deixa de funcionar.
A revista Istoé[1] noticiou no dia 09 de outubro do presente ano o veto do presidente Bolsonaro ao projeto de lei que tornava obrigatório a presença de psicólogos e assistentes sociais em escolas públicas. Para além disso, o governo federal tem feito inúmeros cortes de verbas destinadas à saúde mental[2]. Essas notícias dispensam comentários, a revolta e indignação bloqueiam a escrita.
Somos seres decadentes e imperfeitos, essas características são essenciais à condição humana. Apesar de todo pessimismo que essa afirmação possa conter, o único caminho para sobreviver à essa verdade de modo minimamente digno é se fazer consciente dela. Autoconhecimento é o primeiro passo na direção oposta à loucura.
Fonte da imagem: https://mdemulher.abril.com.br/saude/risada-patologica-como-a-do-coringa-existe-neurologistas-explicam/
Referências:
BERGSON, Henri. O riso: Ensaio sobre a significacao da comicidade. 2.ed. Trad.: Ivone Castilho Benedetti. Sao Paulo: Martins Fontes, 2007. – (Coleção Tópicos)
[1] https://istoe.com.br/bolsonaro-veta-pl-que-exigia-psicologia-e-assistencia-social-em-escolas-publicas/
[2] https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2018/11/19/ministerio-da-saude-suspende-quase-r-78-milhoes-em-repasses-para-atendimento-a-saude-mental.ghtml