Irmã Dulce está prestes a ser oficialmente santificada. Ela que foi considerada a religiosa brasileira do Século XX, segundo uma enquete nacional realizada nos fins da década de 1990. Ocupará o mesmo hall junto a dois de seus contemporâneos, que conheceu pessoalmente: Madre Tereza de Calcutá e João Paulo II.
A história da freira baiana, nascida em Salvador no ano de 1914, mostra sua dedicação aos desfavorecidos. Aos 13 anos acolhia desabrigados na residência onde morava com a família. Já ordenada em uma congregação missionária, passou a assistir os carentes que habitavam as palafitas dos Alagados, a “favela da maré”, assim conhecida devido aos casebres que eram erguidos sobre as águas. Após peregrinar pela cidade ajudando centenas de sem-teto, conseguiu ocupar um galinheiro na Cidade Baixa, onde anos mais tarde fundou suas obras sociais. Faleceu em 1992, aos 78 anos.
Apesar de ser lembrada pela caridade, tão difundida pela Igreja onde pregava, há algumas curiosidades sobre sua trajetória. Irmã Dulce atendia operários e fundou a União Operária São Francisco. Foi a primeira organização operária católica da Bahia. Mesmo não se podendo afirmar categoricamente, ela contribuiu muito para associações trabalhistas e futuras defesas por benefícios para a causa operária com a atitude em agrupá-los. Anos depois, ela invadiu cinco casas localizadas no Subúrbio Ferroviário para abrigar doentes, sendo expulsa logo depois por ocupação ilegal de propriedade particular. Nota-se que seu senso de justiça e auxílio ao próximo superava qualquer determinação em obedecer a normas legais. Priorizou sua defesa dos mais necessitados, acima de respeitar o terreno alheio. Percebia muito bem o desequilíbrio social que imperava desde sempre.
Fundou em 1948 o Cine Roma que, além de mostra de filmes, recebia shows e peças teatrais, mostrando que seu ativismo também abraçava a cultura. Foi lá que Roberto Carlos se apresentou no auge da Jovem Guarda; Raul Seixas iniciou sua carreira tocando com Os Panteras; e Waldick Soriano cantava suas lamúrias amorosas. Artistas que, na época, não manifestavam abertamente nenhuma inclinação cristã... Além do Cine Roma, inaugurou os Cines Plataforma e São Caetano. Reconhecia que a arte tinha potencial para mudar as vidas de muita gente, inclusive sem perspectiva de futuro, muitos deles resgatados por ela da total miséria.
Se aproximou de vários políticos. Não que almejasse alguma carreira na área. Importava qualquer ajuda para que seu trabalho social se desenvolvesse e pudesse alcançar o atendimento ao maior número possível de agraciados, viesse de quem fosse. Ganhou prestígio e reconhecimento. O então presidente José Sarney passou seu telefone pessoal a ela. Caso ligasse, não passaria por intermediários. Cairia diretamente na mesa dele. Nos últimos 25 anos, o Hospital Santo Antônio – fruto de sua dedicação – realizou cerca de 60 milhões de atendimentos.
Irmã Dulce provou que justiça social não é balela. Ela se referia às crianças que abrigava como “Capitães de Areia”, exatamente a denominação utilizada por Jorge Amado para descrever os menores abandonados da Salvador dos anos 30 em seus romances. Fico me perguntando se alguém que tomasse algumas atitudes que ela tomou seria chamado de oportunista, vigarista, e até mesmo “comunista” no Brasil de hoje. Mergulhados numa “onda liberal”, nosso país apresenta em alguns setores certa desconfiança por quem levanta a bandeira contra a desigualdade social por meio de uma ação mais direta junto àqueles que nada possuem. O legado de Irmã Dulce é associado quase sempre à caridade cristã. Mas seu memorial é muito mais que isso. Seu lugar no Panteão está mais próximo de Joana D’arc e São Jorge que de outros mais “pueris” (mesmo sabendo que em vida, nenhum deles foi totalmente “santo”, no limiar da palavra). Que não apenas a freira seja santificada. Seus fundamentos também.
FONTE:
https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2019/05/14/agraciado-com-2o-milagre-de-irma-dulce-reconhecido-pelo-vaticano-foi-curado-apos-14-anos-cego-canonizacao-sera-marcada-em-julho.ghtml
https://extra.globo.com/noticias/brasil/canonizacao-de-irma-dulce-veja-dez-curiosidades-sobre-santa-24012037.html