Claro que a essa altura do campeonato você já ouviu falar sobre a polêmica envolvendo o prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella. Com muita agressividade, além do óbvio exagero, censurou uma HQ da Marvel por um motivo curioso, um beijo gay, alegando que o material era impróprio, um verdadeiro atentado à ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Ao longo das semanas várias mensagens já devem ter circulado em seu feed de notícia no facebook, instagram, ou qualquer rede social onde você circula. O clima pesou dos dois lados do jogo, a temperatura saiu do controle e os ânimos esquentaram, mobilizando toneladas de memes, justificações e metáforas, um verdadeiro campo de batalha cheio de espadas, lanças, escudos e tudo aquilo de conveniente no terreno da linguagem. O interessante dessa história é o quanto nós assumimos a ideia de que o jogo é formado por dois lados, por dois opostos, por dois extremos. Será mesmo? Será que existem apenas dois times em campo? Vou lançar uma carta diferente na mesa, se vocês me permitem e não for muito incomodo. Minha hipótese é simples, no final das contas, mas ainda assim estranha: a existência de um terceiro elemento, de um terceiro participante meio modesto no fundo da quadra, uma figura um pouco escondida, mas ainda assim importante. De qualquer forma, o objetivo desse ensaio não é discutir o acontecido, nem mesmo seus elementos jurídicos ou éticos, mas levantar a hipótese da existência de uma guerra de representações nos bastidores de tanta polêmica, além de propor uma alternativa, talvez até mais reconciliatória se comparada com aquelas que circulam no momento.
Quando o assunto é a homossexualidade existem duas imagens circulando pelos corredores e becos, duas representações tão fortes que muitas vezes se confundem com o próprio mundo. A primeira opção escorre da direita, principalmente aquela reacionária, intolerante, além de muito religiosa, em sua maioria. Quando pensam em um “Gay”, pensam na pura materialidade de um corpo, pensam em sexo anal, esperma, fezes e urina, uma mistura de gotas de suor e muitos gritos de prazer e palavrões, reduzindo assim a experiência do outro a um puro pedaço de carne, e nada além. O “Gay”, aqui, nada mais é do que um pacote de fluidos e intensidade, um excesso mal cheiroso, barulhento e constrangedor. Não é o beijo que incomoda o reacionário, mas aquilo que ele sugere, ou seja, seus bastidores, seu subsolo. O beijo esconde o cú, o cú esconde o prazer, o prazer esconde um corpo nada conveniente.
A segunda representação escorre pela esquerda (liberal), escorre pelo dedilhado dos músicos da MPB, pelas conversas acadêmicas nos barzinhos, pelas assembleias estudantis. Quando falam na figura do “Gay”, ou melhor, quando falam em algum membro da comunidade LGBT +, imaginam um casal se beijando ao pôr do sol, enquanto o vento balança seus cabelos, acompanhando assim o ritmo das ondas. Aos olhos da MPB, o amor é puro, linear, agradável, em outras palavras, o amor é poético, embora não no bom sentido do termo. Se o primeiro grupo, aquele dos reacionários, reduz o amor ao corpo, a esquerda (liberal) reduz o amor à linguagem, aos seus protocolos e rituais, dentro de uma narrativa suave, bonita. Nesse terreno, não existe excesso, não existe nada embaraçoso ou estranho. Tudo permanece bem costurado dentro de uma moldura muito conveniente, dentro de uma cadeia previsível de experiências.
Diante desse dilema, você, caro leitor, poderia perguntar: “se o ‘Gay’ não é um pacote de fluidos como imagina a direita (reacionária), nem é o romantismo adocicado da esquerda (liberal), O QUE É O ‘GAY’?” Pergunta interessante, mas ao mesmo tempo sem sentido!! Chegamos, enfim, ao núcleo do ensaio. De uma forma filosófica, bem nietzschiana, eu diria que o ‘Gay’ basicamente NÃO É, ou seja, ele não é um núcleo sólido, não é um predicado, muito menos um pretexto político. Como qualquer forma de experiência, esse “Gay” é movimento, interação, sendo um pacote complexo de encontros, diálogos e eventos. Os dois grupos, tanto a direita reacionária, como a esquerda liberal, escorregam no mesmo problema, ao reduzir o Outro a um discurso, transformando tudo em apenas um pretexto político. A direita coleta da experiência o que convém, assim como a esquerda, quase como num filme de entretenimento, em que as cenas são recortadas e encadeadas de forma conveniente. Falta na esquerda e na direita aquilo que Deleuze chamou de “tempo morto”, aquele excesso de vida, aquele ponto de fuga, um tipo de parcela que não é acolhida pela nossa linguagem, já que contradiz o movimento linear das nossas expectativas. Imagine uma cena de um filme onde um personagem precisa subir uma simples escada, embora seja enorme o seu tamanho, cerca de 100 degraus. Ele põe os pés no primeiro degrau e logo em seguida a cena é cortada, enquanto “magicamente” ele aparece logo no topo, chegando ao seu destino. O que falta nessa cena? Faltam justamente os 98 degraus, o senso de processo, o meio, o deslocamento. A cena é distorcida para reforçar a estrutura de uma narrativa, para que o diretor fique satisfeito com o que acontece diante de si. O “tempo morto”, portanto, desaparece, sendo ocultado nos bastidores.
Sem dúvida precisamos combater a imagem grosseira da direita (reacionária), o seu ódio direcionado contra as minorias, mas isso não significa cair no oposto, em um completo romantismo. Criticar as definições perigosas da direita não é fazer o mesmo, mas com predicados agradáveis. É preciso implodir a própria estrutura de predicação, a própria crença de que “o mundo É o que eu digo que o mundo é”, quando, na verdade, esse mesmo mundo, esse mesmo Outro, tem autonomia, tem vida. Por que não ver o beijo gay como apenas um beijo, e não como um pretexto de algo além? Por que buscar um sentido por trás? Precisamos de um beijo para além da representação, precisamos de um puro beijo fenomenológico, e nada mais. Um beijo que não represente nada, mas apenas seja. Quando isso acontecer, quando a linguagem não for levada mais tão a sério, a ponto da paranoia completa, finalmente teremos alguns instantes de paz, pelo menos uma leve redução de conflitos desnecessários.
REFERÊNCIA DA IMAGEM:
https://psicologaclaudiacruz.com/2017/01/22/o-homem-e-o-martelo-quando-o-pensamento-vai-alem-da-realidade/