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Antonio Danilo Pereira Santana

A Justiça diante de um grito (ou a potência de um consenso contra o Estado de exceção)


Muitos gritam “Lula Livre!”. Eu faço parte desses muitos. Mas há uma gama de perspectivas rodeando o amplo contingente de pessoas que sustentam esse grito, sejam elas simpatizantes da esquerda, da centro-esquerda e até da centro-direita – sim, muitos liberais também clamam pela libertação do líder máximo da esquerda nacional, não por anseio político, obviamente, mas por preocupação com o estupro a nossas instituições praticado por meio dos famigerados processos penais, o que o levou à prisão e os que ainda podem aumentar o tempo de encarceramento do ex-presidente!


Quem pede em alto e bom som “Lula Livre!” também pode pedi-lo porque, por exemplo, enxerga no pernambucano que migrou para São Paulo na infância o único líder político capaz de comandar uma coalizão forte o suficiente para varrer o bolsonarismo do poder central, daqui a três anos. Ao mesmo tempo, quem levanta essa bandeira pode fazê-lo por reconhecimento aos bons tempos em que vivera sob seu governo, quando a taxa de desemprego chegou a alcançar menos de 5% da força de trabalho em idade ativa do país (tecnicamente falando, o pleno emprego), o financiamento habitacional era muito mais amplo e acessível que nos tempos atuais e o consumo de bens duráveis crescera em relação à era FCH, mesmo que, neste caso, a pessoa entenda ter ele, Luís Inácio, praticado os crimes pelos quais responde.


Há ainda aquelas pessoas que gritam pela libertação do petista que enxergam em sua prisão a representação máxima da imagem do Estado burguês sendo utilizado pelas elites capitalistas para oprimir e suprimir da vida pública aquele que encarnaria a figura do operário genérico que conseguiu levar a classe trabalhadora ao poder, o líder sindical máximo da nossa história – não vou dizer que ele é tido por esse grupo como o nosso Lech Walesa, pois a coisa estaria mais para o polonês ser o Lula deles, polacos, tamanho o peso do filho de Garanhuns no imaginário da classe trabalhadora mundial, conforme tal percepção. São essas pessoas em geral os socialistas revolucionários, geralmente filiados ao PCB e demais partidos da extrema-esquerda (incluindo algumas alas do PSOL e do PT), além de algumas pertencentes a alas ainda mais radicais à esquerda, como os marxistas conselhistas ou autonomistas. A opressão a um operário de origem, um mestiço filho das classes populares do Nordeste do país, enfim, é aqui a mola propulsora máxima da revolta deste segmento contra o encarceramento do petista.


Como vemos, são muitos os que gritam, e há muitos motivos para gritarem. Os negros organizados em movimento também exclamam pela saída de Lula da cela da Polícia Federal em Curitiba, pois, dentre muitos motivos, sob o seu governo o Estado brasileiro assumiu sua dívida histórica para com essa imensa população, implementando a política de cotas raciais nas Universidades e Institutos Federais por todo o país, gradualmente. Assim também, os sem-teto, os sem-terra, os indígenas e as feministas, que tiveram suas pautas assumidas, ao menos em parte (ainda assim, sem dúvida, numa crescente exponencial em relação aos governos anteriores), pela agenda pública petista, também eles pedem em alto e bom som “Lula Livre!”.


Entre todas essas pessoas e aquelas sedentas pela punição mais severa possível ao ex-presidente, este último grupo formado em geral por bolsonaristas, lavajatistas e simpatizantes do Movimento Brasil Livre, dentre alguns outros movimentos de direita que eclodiram no Brasil nos últimos anos, há um grupo de pessoas, como dito antes, que não clama pela liberdade de Lula por admirá-lo como líder político, mas por preocupação com a situação das instituições diante da forma suspeita como a Operação Lava Jato vem realizando suas prisões e como os juízes por ela responsáveis vêm atuando durante seu desenrolar. Mas cabe ressaltar que também entre estas, Lula jamais foi uma figura que passou ao largo de seus julgamentos político-morais, e não viria a ser agora, logicamente. A maior parte destes indivíduos, quando não chega a expressar certo repúdio à figura de Luís Inácio, por ela nutre uma espécie de antipatia. Sim, o ex-presidente não é daquele tipo de personagem histórico ante o qual é possível se manter indiferente. Na mais perfeita encarnação do líder carismático weberiano, Lula desperta amores de grande parte da população na mesma medida em que é capaz de despertar o ódio mais agudo de certos grupos, como já bastante dito por aí, logo, a meu ver, quem consegue defender sua liberdade, mesmo não nutrindo simpatia alguma por sua figura, é o tipo de sujeito democrático por natureza, aquele que carrega o ethos aristotélico da virtude dos homens bem preparados e que preparam as boas leis, aqueles dados à boa convivência com a sociedade que os cerca.


O primeiro grupo dos que pedem “Lula Livre!”, o dos indivíduos associados ao progressismo ou genericamente identificados com a esquerda política, ou ao menos uma parcela significativa deles, são também homens virtuosos, almas democráticas, associativas e civilizadas. Aqui, não por defender algo sem paixão, mas, ao contrário, pela expressão de uma dupla paixão, isto é, pelo objeto específico ao qual defendem, a figura de Lula, e pelo cumprimento da justiça numa dimensão genérica, com a libertação de um indivíduo preso injustamente. Se a paixão no grupo intermediário era o bom funcionamento das instituições como símbolo do bom funcionamento do Estado liberal moderno, parte dos sujeitos à esquerda que clamam pela libertação do ex-presidente petista estão a exercer sua paixão pela figura mítica do grande líder popular e, ao mesmo tempo, pela ideia de funcionamento justo de uma instituição que, mesmo pertencendo à engrenagem de uma máquina injusta, qual seja o Estado burguês, pode, sim, operar justamente, no mais profundo sentido do termo, em muitos casos concretos.


Um grupo e outro são constituídos por sujeitos de virtudes políticas aristotélicas, embora um esteja associado à perspectiva do revolucionamento de um estado de coisas e outro, à sua conservação. Eis a Justiça e seu duplo: seu bom funcionamento pode ocorrer ao mesmo tempo fortalecendo uma lógica conservadora e normalizadora, de um lado, e de outro, uma lógica revolucionária e pulsante, já que o desfecho de um caso concreto sempre pode servir a mais de uma causa maior, pois é na mediação política que a materialização do conceito de Justiça aparece aos olhos das partes envolvidas, da opinião pública e dos operadores da norma, aparece a todos estes como conteúdo ôntico, enfim. Aqui teríamos, então, o bom uso das leis por quem dele sabe tirar proveito? Não, eu diria que, neste caso concreto envolvendo um ex-presidente preso a qualquer custo para não poder voltar ao poder, trata-se mais de o bom uso dos efeitos que uma condenação sem provas pode trazer, não somente para reconfigurar o bom funcionamento das instituições jurídicas, mas, e principalmente, para retomar o ciclo democrático quebrado com a ruptura institucional ocorrida há pouco mais de três anos, com o afastamento de Dilma Rousseff sem que tenha ficado comprovado de maneira inconteste o cometimento de crime de responsabilidade a ela atribuído.


E se você estiver se perguntando: “e você, cara, por que também está entre os que gritam ‘Lula Livre!’?” Bom, se chegou até essa parte final do texto e não compreendeu por que grito, certamente não aprendeu a ler com o espírito de quem sabe encontrar nos textos o equilíbrio entre razão e paixão, quando neles este se faz presente, e certamente está faltando um pouco de Nietzsche na sua vida tão redondinha.



*Mestrando em Ciências Sociais pela UFBA e Técnico Universitário na UNEB.

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