top of page
Antonio Danilo Pereira Santana

Política enquanto religião (ou pela recuperação da funcionalidade perdida do poder)


“As instituições brasileiras estão muito bem consolidadas”, “as nossas instituições estão sólidas”, “quem sentar na cadeira presidencial acabará se adequando ao peso da institucionalidade” etc., quantas vezes não ouvimos essas frases nos meios acadêmicos e na mídia especializada durante o decorrer do processo eleitoral de 2018? A mim ficou claro que essas frases se davam mais como um exercício explicativo preguiçoso diante de uma ameaça real justamente porque quem as proferia não acreditava na realidade da ameaça que tomava corpo. Os tempos vêm mudando, e vêm desde bem antes das eleições do ano passado. Os meios acadêmicos e a mídia especializada, talvez ainda atordoados pela velocidade dessas mudanças, talvez por crerem, de fato, no caráter robusto das instituições, ou, por fim, talvez por não acreditarem no crescimento de um candidato incivilizado e oriundo do chamado “baixo clero” do Congresso Nacional, enfim, demoraram, aliás, ainda estão demorando a acordar diante do mundo de bizarrices em que se tornou nosso cenário político a partir do derradeiro pleito eleitoral.


Em sua obra Sociologia do Direito I, o sociólogo alemão Niklas Luhmann afirma que “reconhecer e absorver as perspectivas de um outro como minhas próprias só é possível se reconheço o outro como um outro eu” (LUHMANN, 1983, p. 47). Na política brasileira atual, nada parece soar mais esquisito aos ouvidos que uma frase desse tipo. Sim, porque mais que empatia, a frase de Luhmann denota a possibilidade de criação compartilhada, de avanço num determinado segmento comum a partir do reconhecimento do outro como igualmente legítimo a ponto de buscarmos algo semelhante ao que ele buscou, em síntese, aponta para a capacidade de se construir caminhos possíveis de serem partilhados.


A nossa política atual vive um drama que acaba desviando-a de uma perspectiva desse tipo justamente na medida em que, de um lado, temos um governo reacionário, altamente desestabilizador, em termos institucionais (trocas de chefias constantes, mal estar com outros poderes, circuitos entre seus vários núcleos de poder...), que copiosamente vocifera o desejo de pôr abaixo qualquer vestígio das “políticas comunistas” (sic) dos governos anteriores; e de outro, uma oposição paralisada e em parte saudosa de tempos recentes em que esteve no poder, mas sem uma estratégia clara de enfrentamento do atual estado de coisas, que se divide em um núcleo cirista e outro lulista e que – não sem razão, já que o outro lado é patologicamente aficionado com a ideia de destruir qualquer tipo de política identificada com a centro-esquerda – não enxerga nenhuma possibilidade de construção de algum tipo de caminho compartilhado com o atual governo com vistas à estabilidade nacional.


No limite, vivemos atualmente o drama de estarmos em plena corrosão da política enquanto articulação de divergências com vistas a uma síntese, que no Brasil se fez presente durante anos via presidencialismo de coalizão, sem, no entanto, termos algo substancial e funcional para pôr em seu lugar, como bem ressaltou o governador do Maranhão, Flávio Dino, no programa Roda Viva, da TV Cultura, exibido neste mês de setembro.


Michel Maffesoli, sociólogo francês responsável pelo conceito de tribo urbana, defende a ideia de que o poder político está inserido na dimensão do sagrado, do religioso, afirmando que “não há política sem religião” (MAFFESOLI, 2011, p. 30), e, em sentido estrito, é ela propriamente religião, pois é ela “o que une as pessoas partilhando um conjunto de pressupostos comuns” (Idem).


Muito se fala das origens etimológicas greco-romanas do termo religião (religare, religação entre pecadores que retornam ao seio do Deus generoso, que acolhe as almas perdidas, segundo Lactâncio). Se trilharmos a perspectiva de Maffesoli de percepção da política como religião, quem virá a ser o Deus (líder político) a acolher os pecadores (povo) através do processo de religação, nas eleições nacionais de 2022? Lula, numa versão mais à esquerda que as de 2002 e 2006 (isso se a maré judiciária virar a seu favor, obviamente)? Ciro Gomes e seu “neodesenvolvimentismo esclarecido”? O próprio Bolsonaro numa candidatura com uma roupagem mais abertamente autoritária que a de 2018 (por mais tosco, incompetente e vigarista que este último seja aos olhos de analistas políticos minimamente competentes, vale lembrarmos que aos olhos de ao menos 20% do eleitorado nacional ele continua sendo visto como um líder)? Ou alguma outra liderança nacional a emergir nos próximos três anos?


Quem quer que venha a tentar encarnar a função de Deus, na quase metáfora maffesoliana, terá de justamente recuperar a própria condição de possibilidade metafórica, isto é, liderar um conjunto de forças capaz de fazer com que a política volte a ser a esfera societária responsável por unir as pessoas que partilham uma gama de pressupostos comuns. De acordo com essa perspectiva, portanto, podemos, de antemão, excluir um dos líderes aqui destacados. Se Lula foi capaz de, apesar das diferenças, estabelecer um processo de comunicação e até continuidade de determinadas políticas e agenda civilizatória da era FHC, aprofundando as políticas sociais, sobretudo; se Ciro Gomes já sinalizou pela defesa do progressismo de costumes e pacto entre capital e trabalho, neste sentido, tal qual o petista; e se, por fim, surgir uma liderança tendente a se contrapor ao bolsonarismo em pelo menos uma das suas três agendas (moral, política e econômica) – dificilmente deva surgir algum nome com o perfil totalmente encaixável no bolsonarismo – resta-nos a constatação de que o atual presidente não pode ser tido como o Deus da quase metáfora maffesoliana, posto que nessas três agendas opte deliberadamente (talvez por insanidade, esperteza ligada à sobrevivência política ou mesmo por recalque, no sentido freudiano do termo) pela destruição do caráter essencial da política, ou seja, do espaço para compartilhamento dos pressupostos comuns.


Mas essa nova liderança, caso surja, será necessariamente da centro-esquerda ou esquerda? Não afirmei isto em momento algum. O que aqui apontei foi para o fato de que, dos possíveis candidatos pertencentes ao campo da direita e centro-direita que no atual momento dão sinais de um possível crescimento no âmbito eleitoral até 2022, apresentando-se como alternativas às opções do cirismo e do lulismo, isto é, João Doria, Wilson Witzel e Luciano Huck, dois deles podem sofrer um derretimento da imagem já antes daquele ano em decorrência de um possível desgaste irreversível do bolsonarismo, tendo seu capital político inviabilizado, e isto porque o primeiro deles, Doria, dificilmente conseguirá descolar sua imagem da campanha “BolsoDoria” na qual mergulhou de cabeça, no ano passado, o que levou, inclusive, a uma crise colossal no interior de seu partido, o PSDB. Quanto a Witzel, é muito improvável que ele seja capaz de se desassociar da imagem de um bolsonarista sem o apelo do atual governante nacional entre os reacionários de Norte a Sul do país, ou seja, até o momento ele não tem apresentado nenhuma capacidade de se firmar como líder nacional, mas somente de modo capenga, talvez, como líder estadual.


Por fim, no caso de Huck, única das três possíveis lideranças da margem direita da política nacional virtualmente capaz de se contrapor à possivelmente intensa disputa em torno das forças que orbitam e dão sustentação às candidaturas de Lula e Ciro daqui a três anos que não tem associação direta com o bolsonarismo, ele poderá, por outro lado, ser vítima de uma curiosa contraposição firme e tacitamente consensual entre esquerda e extrema-direita, noutros termos, poderá sofrer pela associação de sua imagem às Organizações Globo, que ultimamente tem despertado forte antipatia não somente da esquerda, sua tradicional adversária política, mas dos núcleos bolsonaristas puro-sangue, que, como dito antes, giram em torno de no mínimo 20% do eleitorado nacional. Vejam como é a política e suas mutações: o que antes era tido como forte capital político, o apoio de uma gigante da comunicação mundial, hoje pode ser um sério problema para um candidato.


Ainda restam três longos anos para as próximas eleições nacionais, e o que fica claro em relação à disputa entre as possibilidades de salvação da dimensão política e as de sua total deformação (já que eliminada ela nunca será, pois é algo inerente às organizações sociais) é que nem toda liderança pode ser Deus, pois nem todo povo tem a capacidade de se religar ao divino. Dizendo de outro modo, no atual contexto nacional, entre Deus e o povo, ou entre o líder político e seus eleitores, ganhou campo, nos últimos tempos, uma série de contingências que agem no sentido de dificultar que nossa esfera política venha a fluir de maneira funcional, democrática e racional, apesar das paixões, que fazem parte dessa atividade humana e trazem muito bem a ela, se casadas à razão, vale a pena ressaltar.


O religare político só não pode ser operado pelo ódio, o lado mais venenoso e destrutivo das paixões humanas e que vem tornando nossa esfera institucional um grande arcabouço disfuncional.



*Mestrando em Ciências Sociais pela UFBA e Técnico Universitário na UNEB.



Link da imagem: https://guiame.com.br/gospel/noticias/bolsonaro-diz-que-ira-seguir-os-ensinamentos-de-deus-em-seu-governo.html


Referências


LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro, RJ: Tempo Brasileiro, 1983.


MAFFESOLI, Michel. A Transfiguração do Político: a tribalização do mundo. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre. RS: Editora Sulina, 2011

20 visualizações0 comentário
bottom of page