Sobre tudo é possível discutir, já que somos filhos dos mestres da suspeita, como Marx, Freud e Nietzsche, ao menos é assim que contam a história. As ciências humanas, e sociais, nasceram nesse solo ácido de desconfiança, nesse campo arqueológico, onde tudo pode ser escavado, até mesmo nossos palácios de cristal, como diria Dostoievski. Por conta disso, escavamos as profundezas do capitalismo, da mídia, do Estado, da religião, e de tudo aquilo que nos cerca e nos incomoda. Mas e os nossos amiguinhos peludos? “Aí, não, Thiago!! Você foi longe de mais” Responde alguém nos comentários. Ou “Não li seu texto, mas não concordo com você, de qualquer maneira”, responde outro de um jeito agressivo. Claro que estamos acostumados apenas a questionar o que convém, aquilo que nos ameaça, nos insulta, quase como um instrumento de defesa. A sociologia, infelizmente, não nasceu para ser uma ferramenta conveniente, mas uma bebida ácida, ainda que refrescante. De qualquer forma, convido você, leitor, a tomar alguns goles de sociologia, misturada com algumas gotas de psicanálise, deixando que seu líquido escorra pela sua garganta, enquanto degusta o seu sabor original. Alguns devem sentir um pouco de desconforto no início, mas faz parte. Por outro lado, se quiser conveniência, ilusão, temos uma coca-cola zero esperando por você no freezer.
Segundo Nietzsche, ou qualquer pessoa sensata, a vida não é fácil, assim como as relações ao redor. Na tentativa de contornar esse fato incontornável, ou melhor, na tentativa de negar esse fato, criamos artifícios de linguagem que nos ajudam a suportar o peso das experiências, o que ele chamou de Metafísica. Freud, no século XX, seguindo o mesmo percurso genealógico, chamou isso de sintoma. Não importa se a explicação é filosófica ou psicanalítica, o importante é entender que o corpo, uma vez ameaçado, em risco, desenvolve estratégias para sobreviver. Às vezes essa estratégia é política, religiosa, econômica, artística, ou, doméstica. O meu argumento é que cães e gatos não são reais, ao menos aqueles que compartilham o nosso teto, principalmente no sentido lacanaiano de Real, mas sim elementos simbólicos, ou até imaginários, reflexos de uma certa construção do “eu”. Por esse motivo, cães e gatos seriam sintomas... claro que sintomas fofos, convenientes, acolhidos pelo público, mas nem por isso deixam de ser sintomas.
Normalmente pensamos em “sintoma” como algo individual, como uma crise fácil de identificar, como quando um esquizofrênico sai gritando na rua sem roupa. Mas o sintoma pode ser uma instituição, por exemplo. Ou seja, existem por aí sintomas coletivos, compartilhados, e que, por serem coletivos, não são vistos. Não quero dizer com isso que cães e gatos são doenças, mas que nós somos o problema, ao estabelecer um vínculo ilusório, unilateral e, por que não dizer, agressivo. Existe uma violência nesse aparente amor doméstico, além de um aspecto sintomático. Não apenas nós sofremos com tanta ilusão, como também compartilhamos a angústia com nossos companheiros domésticos, responsabilizando cada um deles por coisas que são de suas responsabilidades, cobrando que sejam algo que não são e que jamais seriam (o marido que nunca existiu, o filho que nunca tive, as amizades que não consigo estabelecer, etc).
Os cães e gatos seriam uma espécie de miragem, uma ilusão de ótica projetada por um capitalismo corrosivo, um sintoma do mal estar daqueles que vivem em um mundo onde as relações se desmancham e perdem profundidade. Um mundo onde o humano se tornou complexo demais, estranho demais, o que não acontecia antes, pelo menos não com tanta frequência. O meu argumento é o seguinte: o nosso acesso aos cães e gatos não se dá de forma direta, imediata, espontânea, mas mediada por uma dimensão simbólica, entendendo aqui a linguagem, e imaginária, quando o assunto é o nosso ego. Embora seja conveniente esse cenário, onde o OUTRO deixa de ser o outro e se torna uma extensão do meu eu e de suas carências, isso não configura de fato um vínculo, uma relação, muito pelo contrário. Nesse espaço onde o outro não tem autonomia, temos apenas o puro e velho narcisismo, e nada mais, ou seja, um tipo bem sutil, mas impactante, de violência. “Mas o que seria o cão REAL ou o gato REAL?”, pergunta alguém curioso. Difícil dizer, difícil até representar, mas provavelmente algo mais complexo, como qualquer organismo vivo, e não apenas uma extensão das minhas lacunas, do meu ego dilacerado.
É comum ouvir por aí que nós tratamos animais de estimação como se fossem pessoas... antes fosse isso. O problema é muito mais grave, mais profundo. Não tratamos cães e gatos como humanos, mas como um produto de consumo, um objeto feito sob medida, sem excessos ou resistência. Os humanos de verdade são complicados, estranhos, contraditórios e oscilantes, ao contrário do meu lavrador fofo com olhos redondos e um rosto infantil.
Sem dúvida, precisamos que algo estabilize nossa experiência, nossa vida dentro de um mundo adoecido, rasgado por contradições. Segundo ẐIẐEK, por conta disso, temos duas alternativas: 1) ou nos lançamos no mundo virtual, em busca de uma narrativa sólida e atraente, como acontece em jogos eletrônicos, redes sociais, etc ou 2) trazemos o virtual para o mundo real, como acontece com nossos cães e gatos. Esses animais de estimação se comportam como os personagens do Pokemon Go, sendo o inverso do primeiro. Hoje é o virtual que entra no mundo real, e não o contrário, sendo o que acontece com os nossos cães e gatos, além de outras relações que nem suspeitamos.
Algum amante da mãe natureza poderia enxergar esse meu ensaio como um ataque aos cães e gatos, quase uma ofensa, mas é justamente o contrário. É um convite para olhar essas criaturas com mais cuidado, evitando violências e agressões desnecessárias. Nos espantamos muito quando um cão é agredido na rua na base de chutes e socos, gerando assim várias declarações indignadas no Facebook ou no Instagram, mas não percebemos que estamos agredindo muito mais, ao transformar os nossos bichos em objetos de estimação, ainda que mascarados como se fossem sujeitos. O problema não é transformar cães e gatos em pessoas, o que seria até algo razoável de se fazer. As pessoas tem autonomia, tem intensidade, crises, opções, etc. O problema, ao contrário, é transformar cães e gatos em espelhos, dimensões que refletem apenas nossas imagens distorcidas, carentes e deslocadas. Nem sempre o amor é tão lindo quanto parece. É preciso investigar as origens desse sentimento, caso contrário pessoas vão sofrer e, principalmente, cães, gatos e tudo aquilo que estiver ao nosso redor. O verdadeiro gesto de amor garante a autonomia do amado, permite que seja livre, até mesmo para te frustrar. O amor onde o outro é uma projeção, nada mais do que um prolongamento das minhas lacunas, não é amor... é NARCISISMO, um tipo de masturbação, gesto esse sempre solitário.
E como Cães e Gatos não falam, não gritam, é preciso observar os seus corpos, para além da nossa conveniência, para além do nosso simbólico ou imaginário. Não é justo mutilar suas naturezaa em nome de nossas preferências. Eles não são latas de coca-cola, não são objetos de consumo produzidos sob medida. Eles são excesso, vida, criatividade, como qualquer outro organismo vivo e, por isso, devemos respeito a eles. Os humanos já colonizaram terras, mares e céus, já reivindicaram tudo como posse, e agora resolveram colonizar corpos, mas não de outros humanos, porque isso não é mais politicamente correto. Em compensação, colonizamos hoje os corpos de outras especies, tudo isso apresentado como um gesto de amizade, de afeto... Será mesmo? Ou talvez seja um nova forma de poder sutil, mas muito... muito perigosa?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
https://jornaldebrasilia.com.br/clica-brasilia/eventos/espaco-pet-do-funn-festival-tera-vacinacao-gratuita-contra-raiva-de-caes-e-gatos-neste-domingo/