“Gosto não se discute” é aquela típica frase que todos já escutaram pelo menos uma vez na vida, não é? Quando o assunto é o paladar, o corpo, a comparação é inútil, muito menos algum tipo de julgamento. Embora essa frase tenha sentido, inclusive suporte filosófico, com figuras como Espinoza, Hume e Nietzsche, isso não impede que esse mesmo paladar ganhe justificativas, teorias e, principalmente, métodos, apresentando assim uma solidez ilusória, uma fachada bem construída, ao mesmo tempo que é eficaz e convincente.
O MasterChef Brasil, programa culinário lançado em 2014 no canal Band, estando agora em sua 6ª temporada, com mais de 107 episódios, não apenas revolucionou o cenário de entretenimento da TV brasileira, ao trazer um novo tipo de experiência televisiva, como dispara em popularidade a cada temporada. Seus três jurados (Jacquin, Paola e Fogaça) temperam o programa com muito carisma e presença, quase sempre roubando a cena, acompanhados de comentários interessantes e irônicos. Além de carismáticos, eles produzem, de uma forma bem criativa, uma atmosfera sedutora, preenchida com uma linguagem atraente, repleta de argumentos e justificativas. Além disso, a própria edição e construção dos episodios, cheios de close-ups, trilhas sonoras marcantes, e comentários bem editados, tornam a experiência culinária um elemento quase cinematográfico. Esse lado criativo, artístico, infelizmente não vem à tona, ficando apenas nos bastidores, ocultado, reprimido. Ao invés de afirmar sua veia estética, retórica, os jurados oferecem, ao contrário, uma avaliação objetiva dos pratos, quase como um objeto científico num laboratório qualquer. Esse programa resgata um tipo de filosofia kantiana, onde o gosto não apenas é universal, como também desinteressado. Construído em torno de toda uma metodologia culinária, o gosto perde o seu lado contingente, incerto, provisório, abrindo espaço para um tipo de saber sólido, científico. Os três jurados quase sempre concordam entre si, o que cria mais ainda um sentimento de objetividade, de solidez, como se houvesse algo de óbvio a ser constatado, como se toda aquela “explosão de sabor” fosse um efeito direto de algum cálculo matemático ou experimento físico.
Muitos acreditam que a ideologia é uma simples mentira, um véu que cobre os olhos da figura honesta, mas não é bem assim. A ideologia não apenas existe ao lado da verdade, como depende dela, entendendo aqui “verdade” como uma rede frágil de experiências, ou seja, um conjunto curioso de argumentos, critérios, suor, raiva, alegria, além de milhares e milhares de encontros. O verdadeiro argumento ideológico adora fatos, dados, estatísticas, métodos, tudo isso para ocultar sua dimensão contingente, nesse caso, o corpo. Esse pedaço de matéria, uma espécie de mistura de carne, orgãos e sangue, acaba sendo estranho demais, incômodo demais, e, por isso, não pode simplesmente caminhar por aí, livre, já que desregula tudo ao redor. Dizer apenas que trabalho com Kafka, ou que gosto da escrita kafkiana, não oferece a mim nenhuma vantagem, muito menos prestígio. Preciso, portanto, fazer um malabarismo retórico, contorcer bastante a linguagem, numa busca alucinada pela consistência dos meus argumentos, além da busca pela aprovação dos outros. Ou seja, meu corpo precisa ser justificado, precisa ser acolhido por uma comunidade linguística, senão não vale. Esse paladar que aprecia vinhos, temperos e preparações, é ocultado no interior da linguagem, ganhando verbos, substantivos, adjetivos e tudo mais.
A famosa “cozinha intuitiva”, de figuras como Palmirinha e Ana Maria Braga, não tem espaço nessa atmosfera científica, onde uma única grama faz toda a diferença. Apesar de ser um show teatral, no bom sentido do termo, o MasterChef veste um falso jaleco branco, querendo ser algo que não é, e jamais será. A cozinha intuitiva, ao contrário, não tem pretensão, não tem fórmula, sendo apenas o resultado de um corpo espontâneo. Por isso que frases vagas do tipo “uma pitada de sal”, “mexa até chegar ao ponto”, “adicione só mais um pouquinho de óleo”, jamais fariam sentido no espaço de um MasterChef, espaço muito (sobre) carregado de tanta metodologia.
Por esse motivo, o MasterChef carrega uma atmosfera ideológica, sendo muito mais um palco de grandes retóricas, do que propriamente um espaço inocente e desinteressado. O programa é muito mais sobre linguagem, performance, do que propriamente sobre pratos, ingredientes ou técnicas de cozinha. Paola, Jacquin e Fogaça brincam com a linguagem o tempo todo, até mesmo de uma forma, inclusive, bem teatral, do modo que convém, ocultando seus corpos, suas trajetórias particulares, em nome de uma visão distanciada, objetiva e sólida. E eles justificam tão bem, mas tão bem, que todos acreditam na certeza do ponto de uma carne, na sua obviedade, assim como a simples preparação do chocolate não é tão simples, mas requer a temperatura de 40 graus, caso contrário não alcança o rótulo “PERFEITO”.
“Não adicione creme de leite no molho”, dizem, ou “tenham cuidado com a apresentação do prato”. Todas essas frases são oferecidas como se fossem proposições, frases que supostamente poderiam ser avaliadas, medidas, comparadas. Será mesmo? A armadilha ideológica é tão forte que até mesmo os “dominantes” do jogo despencam no próprio buraco, nesse caso, os próprios jurados acreditam no que fazem, acreditam na solidez das suas falas e das suas práticas, chegando, às vezes, na beira da arrogância. Tudo acaba em algum tipo de manobra criativa, beirando a arte, digamos assim. O MasterChef, nesse sentido, é muito mais um programa performático, teatral, do que culinário. Aprendemos mais sobre a capacidade elástica da linguagem, seu núcleo criativo, do que sobre os temperos de um molho qualquer ou sobre as condições de existência de um ponto de carne.
Através do MasterChef temos um minilaboratório onde podemos observar como a sociedade opera. De um lado, pessoas autorizadas que falam de certo tema, do outro, amadores tentando captar esse saber transmitido. Todos, de qualquer forma, jogando um mesmo jogo, ao mesmo tempo que reforçam uma mesma linguagem de fundo. Os amadores, na medida que são elogiados e entram mais na brincadeira, tendem a naturalizar as regras, assim como naturalizam as palavras e os critérios usados. O MasterChef, portanto, não apenas revela o lado performático e criativo da linguagem, mas também o modo como essa mesma linguagem é reificada, naturalizada, ou seja, reproduzida sem questionamentos. A energia criativa se perde no meio de tanta pretensão e justificativa, criando uma atmosfera óbvia, sólida e impactante.
Ao contrário do que acontece na “cozinha intuitiva”, onde a criatividade é a regra, apesar das receitas e técnicas, o MasterChef acaba perdendo o lado mais divertido do universo culinário, ao transformar tudo em um grande protócolo que deve ser seguido. Em alguns instantes, raros, os próprios jurados questionam tudo isso, ao defender uma forma mais espontânea de cozinha, embora logo despenquem novamente no oceano de métodos. Assim como no exemplo de Kafka, quem gostaria de abrir mão do privilégio, da honra, de ser o conhecedor de algo, o dominante de um campo? Quem quer abraçar um corpo contingente, um saber transitório? Ou seja, em nome da vaidade vendemos o nosso corpo em troca da linguagem, em troca do reconhecimento de outros, além da satisfação de saber algo que a maioria não sabe. Não sei se ficou claro ao leitor, mas o MasterChef é basicamente o modo como a própria sociologia, e as ciências humanas, no geral, operam, ao menos aquelas abordagens mais clássicas. Nós também vendemos nossos corpos em troca de algumas gramas de linguagem, nós também naturalizamos critérios, nós também destruimos o potencial criativo da nossa área, do nosso espaço de jogo. Quem sabe não aparece no horizonte uma sociologia intuitiva também, uma que possa seguir por um outro rumo, arriscando mais, criando mais, sem medo de afirmar aquilo que temos de mais precioso: nossa retórica e nosso pensamento.
REFERÊNCIA DA IMAGEM:
https://oledobrasil.com.br/confira-como-seria-o-masterchef-estadio-seu-clubee/