Por Armando Januário dos Santos (Armando Januário)[1]
Na última sexta, 17, um vídeo viralizou nas redes sociais: uma travesti adentra ao culto da Igreja Assembleia de Deus, em Pernambuco, e cobra ao pastor Deivid Gomes, o dinheiro do serviço sexual que ela prestou. A travesti não foi identificada e mesmo as agências de notícias não confirmaram a data e o local do ocorrido. De concreto, apenas a resposta de Deivid Gomes, juntamente com a esposa, nas redes sociais, afirmando que tudo não passou de uma farsa, com o intuito de prejudicá-lo. Em sua afirmação, o líder religioso se referiu à travesti como “ele”, demonstrando desprezo pela identidade de gênero de uma população diariamente assassinada em massa.
Desde cedo em nossas vidas, a sexualidade lança mão de uma energia psíquica vigorosa, se impondo com veemência. A psicanálise já nos ensinou a compreender à sexualidade alheia e a nossa própria enquanto “polimorfa”, termo utilizado por Sigmund Freud (1856-1939) em seu Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905). Como seres sexuados, podemos seguir diversos caminhos sexuais e não apenas um, conforme determinadas convenções sociais impõem. Essas trilhas pretendem descarregar a excitação, mas, por vezes, são privadas de atingir sua meta, que é proporcionar prazer.
Um dos principais obstáculos à conquista do prazer é o fundamentalismo religioso. Se apresentando como um substitutivo da descarga da excitação, a religião – aqui falamos apenas do cristianismo, especialmente da tradição neopentecostal de terceira onda – não conseguiu dar conta das metas diversas de prazer que os sujeitos possuem. Na verdade, ao oferecer apenas um caminho para sentir prazer – a devoção incondicional à Deus – a religião priva o ser humano de desfrutar de outros prazeres. Mais que priva: ao instituir uma série de dogmas, castra, o que pode resultar na mais profunda sensação de desprazer e levar à neurose. Em Além do Princípio do Prazer (1920), Freud aponta para o sintoma na neurose como possível causador de imensurável desprazer, o qual se apresenta como substituto da satisfação pulsional. Fazendo uma aplicação prática: ao interditar certas práticas sexuais e identidades de gênero, a religião se apresenta como sistema de permuta da meta sexual ao qual o prazer almeja atingir.
O sistema religioso cristão tem fracassado nisso. Primeiro, por se afastar da religiosidade fundamentada no amor para além das diferenças – ensinada por Cristo –, conexão permanente entre a Divindade e os seres humanos, e condição sine qua non para a mediação da espiritualidade. Segundo, por interditar o acesso de pessoas não-heterossexuais e não-cisgêneras em seus espaços. Terceiro, por, mesmo com tantas normas impositivas de heterossexualidade e cisgeneridade[2], não conseguir controlar os corpos dos seus próprios adeptos. Inúmeras são as histórias de maridos e respeitados chefes de famílias cristãs, procurando na clandestinidade da noite, dentro de um carro, ou nos lençóis de um motel, o corpo de uma travesti para a satisfação dos seus prazeres e fetiches, o maior deles, serem penetrados. Em sua obsessão por condenar pessoas LGBTQI+, o cristianismo fracassou como substituto dos prazeres terrenos, especialmente daqueles que ardem na carne...
O episódio entre Deivid Gomes e a travesti, caso seja realidade, não seria surpreendente, se estivéssemos em uma sociedade sexualmente educada. Muitos são os homens heterossexuais e cisgêneros que sentem atração afetivo-sexual por travestis e mulheres transexuais. Não deixarão de ser homens, tampouco heterossexuais, haja vista para muitos deles, a meta do seu prazer residir na quantidade de feminilidade, socialmente encontrada nos corpos de pessoas trans e travestis. Entretanto, em uma cultura que atrela obrigatoriamente sexo de nascimento a gênero socialmente atribuído, a existência de mulheres com pênis é algo impensável. Ainda mais no interior de denominações religiosas preocupadas somente em ensinar o acesso às riquezas materiais, em contraposição ao autoconhecimento, jornada interior rumo ao encontro da Divindade que cada ser possui em si mesmo.
Parece-nos evidente o único meio de evitar situações, como a que se envolveu Deivid Gomes: o reconhecimento da diversidade sexual e de gênero por parte do cristianismo, além do acolhimento das diferenças sexuais e das muitas formas de se vivenciar o gênero. Enquanto a existência de corpos trans e travestis for negada, juntamente com o afeto que despertam em homens cristãos, acontecimentos como esse continuarão ocorrendo dentro de agrupamentos religiosos intolerantes, ultraconservadores, e, principalmente, psicologicamente adoecedores.
[1] Cristão esotérico sem religião. Sexólogo. Psicanalista em formação. Concluinte da graduação em Psicologia. Professor de Língua Inglesa. E-mail: armandopsicologia@yahoo.com.br
[2] O termo cisgeneridade se refere às pessoas autoidentificadas com o gênero que lhes foi atribuído quando do seu nascimento. Por exemplo, uma pessoa que nasceu com um pênis, se sente homem e é reconhecido socialmente como tal, é um homem cisgênero.