Nos cursos de humanas, logo de início na graduação, antes mesmo de qualquer contato mais íntimo com autores e conceitos, muitos tendem a associar a militância com o mundo concreto, material, diferente da teoria que idealiza esse mesmo mundo e se afasta das coisas, quase sempre perdida na névoa dos discursos e proposições. Segundo Marx, o “agir” acaba sendo uma fuga dessa atmosfera pesada, um respiro profundo, uma saída das abstrações, das idealidades; um convite, sem dúvida, irrecusável. Seria uma forma de pôr os dois pés no chão, sem medo de sujar os sapatos, nem mesmo de arregaçar as mangas da camisa. A prática é sempre sinônimo de realidade, do que de fato acontece. Será mesmo? Vou seguir aqui um caminho inverso, um pouco estranho, argumentando que a nossa militância é o local da abstração, enquanto a teoria, quando bem conduzida, ao contrário, é o espaço da realidade, do mundo concreto, de carne e osso. Parece contraditório, muitas veze até irônico, eu sei, mas o que é a Academia se não o espaço onde o conveniente é apenas uma etapa, onde o absurdo é um destino possível, ainda que não desejado? Se o objetivo fosse apenas dizer o óbvio, o que todos esperam, não existiria necessidade alguma de perder tempo com o ensino superior, já que a conveniência não é uma descoberta epistemológica, mas sim uma companheira prática que nos acompanha desde o começo da vida.
No momento em que nos jogamos no mundo, em suas lutas e contradições, quando o calor dos encontros toma conta do nosso corpo, temos uma tendência grande em simplificar a realidade ao nosso redor, principalmente os outros que compõem essa mesma realidade. O inimigo se torna uma abstração, esvaziado de substância, de concretude, sendo apenas uma carcaça vazia onde posso direcionar meu soco, meu chute, meu grito. Como disse o marxista Terry Eagleton, temos o péssimo costume de ver o “mal”, o Outro, como algo que não tem trajetória, não tem contorno, mas apenas uma essência óbvia e rasa. Da mesma forma, o outro lado, o amigo, é também uma abstração, também esvaziado de substância e concretude, esvaziado de contornos, desvios, incoerências, sendo uma identidade bem costurada, sem arestas ou excessos. Na verdade, a militância se torna mais intensa, e mais entusiasmada, quanto mais o mundo se organiza de um jeito simples, acolhedor, quanto mais idealizado ele se apresenta, quanto mais clara é a fronteira entre o bem e o mal, o certo e o errado, o “Eu” e o “Outro”. Muitas nuances, muitos contornos, podem criar um problema grave, jogando dúvida naquilo que deveria ser uma certeza, comprometendo fronteiras que deveriam sólidas, manchando tecidos que deveriam ser brancos, mas talvez não sejam tanto assim, ao menos quando se olha mais de perto, com olhos genealógicos.
A teoria, quando bem cuidada, ao contrário, consegue resgatar o movimento da própria realidade, suas oscilações, o seu lado frágil, caminhando assim na fronteira da própria linguagem, ao frustrar qualquer expectativa, ainda que o desconforto ou a estranheza faça parte do processo. Por esse motivo ela acaba sendo muito mais material, muito mais prática, do que nossa militância. A teoria, quando bem aplicada, pode ser um espaço interessante, um campo inexplorado de encontros, um convite para a mudança, para o crescimento. Sem ser conveniente, a teoria oferece uma linguagem humilde, “perfurada”, como diria Badiou, conhecendo bem o seu alcance, da mesma forma que abrindo brecha para que o Outro apareça, mas sem abstrações, sem qualquer manobra simplificada. De uma forma irônica, a teoria consegue resgatar cheiros, sabores, cores, e tudo isso de um modo mais concreto do que as investidas “práticas” de nossa militância. Ainda não conseguimos aprender com a teoria o suficiente, ainda acreditamos que ela é uma abstração, uma fuga da realidade, quando, ao contrário, ela é o passaporte rumo ao mundo. Teoria é linguagem, linguagem é corpo, corpo é movimento... o que mais precisamos saber?!
Talvez, como diria Ẑiẑek, fosse preciso dar uns passos atrás novamente, recuar alguns centímetros na tentativa de olhar a pintura da vida com uma maior clareza, como talvez gostassem um Pollock ou um Kandinsky. O que não significa que alguma forma evidente, clara, vai se apresentar no centro da tela, muito menos aquela imagem que você tinha em mente ou desejava. É provável que apenas um conjunto de vetores de sentido brotem da tela, em um padrão nem um pouco conveniente, mas bastante belo. Talvez seja preciso repensar toda a musculatura que envolve um soco, um chute, um grito, antes mesmo de sair por aí sujando as botas, agindo por inércia, quase como uma bola de bilhar que desliza em uma mesa de sinuca. Embora seja prazerosa a “militância abstrata”, não apenas pela sensação de pertencimento que oferece, mas pela firmeza de um mundo encadeado e sólido, ela guarda seus riscos, ao menos quando mal direcionada. Precisamos entender que nem toda prática é bem-vinda, nem toda militância é uma boa ideia, sendo, portanto, necessário concluir que nem toda resistência é valida. É preciso que seja bem conduzida, com uma clareza que apenas a teoria é capaz de oferecer, nos resgatando da embriaguez de uma prática conveniente e simplificada. A práxis marxista nasce aqui, nesse contato íntimo entre ação e teoria, desde que ambas as esferas estejam abertas ao diálogo.
O Outro não pode ser mais um simples brinquedo dentro do meu tabuleiro de jogos, ainda que o odeie, ainda que despreze cada centímetro do seu corpo. Não é honesto reduzir alguém a uma abstração, a uma fantasia, a um objeto simplificado e conveniente a mim, nada mais do que um alvo aguardando meu golpe. O Outro não pode perder sua autonomia, seu senso de trajetória, suas oscilações, o que não significa perdoar... de forma nenhuma!! A análise de Hannah Arendt do caso Eichmann, ao contrário do que muitos pensaram na época, não buscava justificar suas ações, muito menos perdoar suas barbaridades. Ela apenas trouxe seus bastidores, sua trajetória, entendendo sua figura não como uma encarnação do mal, simplesmente, mas como um homem de carne e osso dentro de um conjunto complexo de eventos. No livro “Recordações da casa dos mortos”, escrito por Dostoievski, o sentimento de desprezo diante dos prisioneiros jamais é quebrado, afinal, eram assassinos, ladrões, estupradores, etc. Apesar disso, o escritor russo não simplifica a vida e o corpo daqueles indivíduos, mas apresenta seus traços reais, concretos, estranhos e, principalmente, contraditórios. Não perdoamos suas atitudes, claro que não, mas compreendemos suas trajetórias. Não perdoamos suas decisões, mas compreendemos seus corpos.
Nossa militância, portanto, acaba sendo puramente teórica, mesmo quando age no mundo, mesmo quando grita, luta e reage, mesmo quando suja as mãos, até mesmo quando o suor escorre pelo rosto depois de uma longa caminhada militante. Seus passos no asfalto quente, debaixo de um calor insuportável, segue um percurso de abstrações, simplificações, um mundo todo encadeado, onde todos já conquistaram sua posição marcada dentro do tabuleiro de jogos. Um mundo onde o Outro nada mais é do que um prolongamento do meu desejo, da minha expectativa. A frase clássica que ganhou força no final do ano passado, com a eleição de Bolsonaro, “Se ameaça a minha existência, serei resistência”, precisa ser considerada com cuidado, já que as palavras não são objetos mágicos, não resgatam uma verdade óbvia, mas apenas fazem sentido dentro de um campo de articulações. É preciso, portanto, clareza no que se fala, entendendo seus contornos, já que nós, cientistas humanos, temos responsabilidade com a vida de outros, temos responsabilidade com as palavras que encadeamos.
Mesmo sendo conveniente a simplificação, não podemos nos render aos seus encantos, sendo que a nossa linguagem precisa ser sempre responsável, cuidadosa, às vezes até angustiante. A resistência precisa existir, claro, mas dentro do mundo, da vida, e não através de um recorte conveniente, uma abordagem que simplifica tudo ao redor, inclusive a figura do adversário, do inimigo. A resistência precisa de maturidade, ainda que seja delicioso o mundo do imaturo, o mundo simplificado em que bem e mal carregam uma fronteira óbvia e sedutora. Infelizmente não vivemos numa novela, ou num roteiro de Michael Bay, embora fosse perfeito uma narrativa tão simples assim, quase retornando a um universo aristotélico, um espaço óbvio, bem estruturado, apenas aguardando a nossa chegada para assumir nosso lugar de direito.
Compreender a profundidade psicológica dos indivíduos, entendendo suas trajetórias e contornos, não tem nada a ver com justificar seus deslizes ou, pior, destruir a militância. Significa apenas ser fiel ao mundo, a sua complexidade, e, principalmente, ser responsável naquilo que fazemos e falamos. A prática não pode ser vista como um campo conveniente, um simples colchão confortável aguardando a chegada do sono, disposta a tranquilizar a cabeça de alguém. A prática precisa ser real, concreta, ainda que esteja a quilômetros de distância do que é conveniente. Precisamos ouvir a teoria, mas para além do seu conteúdo, para além do conceito. É preciso ouvir sua forma, sua capacidade criativa e profunda de costurar a linguagem. É através dessa abertura que o Outro aparece, assim como a vida em todo seu espetáculo concreto, mas bastante inconveniente.
Referências Bibliográficas:
http://www.fsindical.org.br/charge/crises