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Foto do escritorThiago Araujo Pinho

POR QUE PESSOAS INTELIGENTES NÃO INTERPRETAM FILMES?



Se a linguagem é uma ferramenta, um recurso tão comum, mesmo quando não percebemos, ela provavelmente tem seus limites, assim como um martelo tem suas limitações. A existência de um instrumento depende das características do seu material, o seu tempo de uso, além do seu contato com o que existe ao redor, o que Heidegger chamou de configuração. Não importa se feita de ferro, aço ou diamante, não importa se é usado com cuidado ou agressividade, o limite não é um detalhe opcional, mas uma constante que atravessa cada matéria no mundo, já que todas estão expostas ao tempo e aos obstáculos da vida. Até mesmo um sujeito pretensioso, capaz de justificar cada centímetro da realidade, continua apresentando um limite, um instante em que a palavra não chega mais, um momento em que ela falha e silencia. Segundo a psicanálise, esse silêncio é o espaço da verdade, o lugar que interessa, a fonte do próprio conhecimento. Parece irônico que o silêncio seja associado ao saber, o que fere toda aquela bagagem ensinada nos cursos de Humanas.


Aprendemos nas Ciências Humanas que a verdade é um discurso, uma fala, um conjunto de interpretações elaboradas por alguém, de preferência extraída do núcleo da própria realidade, como um minerador extrai a matéria bruta das profundezas da terra. Quanto mais eu nomeio, quanto mais classifico, mais o mundo se apresenta de uma forma “clara e distinta”, como diria um bom cartesiano. O critério é óbvio, sem dúvida, nada mais do que uma busca incansável pela “transparência” e pela “simplificação”. Se algo existe, se de fato participa daquilo que chamamos de mundo, então pode ser nomeado, pode ser inscrito nas malhas da linguagem, sem qualquer problema. A “verdade”, dizem, é apenas uma forma de “Saber”, um discurso, em outras palavras, ela é apenas um assunto de linguagem, de interpretação. Ao menos é assim que contam a história.


A psicanálise, por outro lado, segue um rumo alternativo, bem diferente daquele que nos acostumamos. A verdade aqui não é bem um discurso, muito pelo contrário. Ela é a ausência do discurso, o instante em que ele falha, quebra, implode. Nesse momento de implosão, o sujeito percebe a si mesmo em um espaço complexo, sem qualquer traço de dualismo, nem fronteiras claras e, principalmente, sem uma causa simples e definitiva. A verdade na psicanálise, portanto, opera no estilo de uma rede, embora não de qualquer tipo. Os fios dessa rede são encharcados de desejo, um corpo que se conecta de várias formas, o tempo todo.


Ao entrar de cabeça na atmosfera acadêmica, respirando cada contorno da sua arquitetura, aprendemos que a “fala” é o grande critério, a chave de entrada no paraíso dos CRÍTICOS. É preciso sempre falar, sempre interpretar, não apenas como se isso fosse um critério de verdade, mas também um sinônimo de sabedoria. Aprendemos que a inteligência de alguém é proporcional à sua capacidade de extrair interpretações, sugerindo sempre criativas categorias, critérios, conceitos, etc.


Esse é um exemplo básico da forma como interpretamos:


Sujeito 1: “O que você acha da cena da orelha decepada em Blue Velvet de David Lynch?”

Sujeito 2: “Ali representa os conflitos internos da existência humana, confrontados com o desamparado diante do nada que nos persegue a cada instante”


Sujeito 1: “E que tal aquele canteiro de flores em Rear Window de Hitchcock?”

Sujeito 2: “O canteiro é uma projeção do consumismo da sociedade capitalista, em que cada flor representa um aspecto dos sete pecados capitais”


O silêncio, nas ciências humanas, sempre foi condenado, entendido como uma postura conservadora de alguém que apenas observa o mundo de fora. Será mesmo assim? Na psicanálise, ao menos a lacaniana, a situação é justamente o contrário. A fala sem fim, a mania de sempre interpretar, nada mais é do que um resquício de paranoia, uma busca por um grande sistema, uma estrutura que conecta cada detalhe do que acontece, sem deixar aparentemente nenhuma aresta, nenhum excesso. O prazer gerado pelo filme, como consequência dessa atitude paranoica, se torna um traço de narcisismo, ao transformar o universo da arte em um simples objeto, numa extensão do seu espectador, fazendo com que perca qualquer traço de autonomia. O filme é aprisionado dentro dos limites da minha linguagem, o que revela um aspecto autoritário de fundo. Se não consigo permitir que Hitchcock respire, sufocado por tantas camadas de interpretação, provavelmente não vou estender esse privilégio para outras pessoas. Um filme pode ser entendido como um tipo de teste ético, uma forma de observar o caráter e a postura política de alguém.


Na psicanálise lacaniana o silêncio é a regra, é o lado revolucionário, aquilo que realmente faz a diferença. Temos agora a possibilidade de ouvir o outro, ou melhor, de ouvir o corpo do outro, na medida em que conecta pontos, escorregando às vezes. O inteligente é aquele que permite o deslizar da linguagem, evitando o conforto dos sistemas e de qualquer recurso paranoico. A melhor estratégia seria uma linguagem beckettiana, ou seja, uma linguagem furada, cheia de lacunas, uma que garanta a autonomia do mundo, já que não mais o sufoca. Uma linguagem que fosse muito mais um movimento, cheio de desvios, contornos, falhas, quebras, etc.


Observe agora esse outro exemplo, mas de um jeito lacaniano:


Sujeito 1: “O que você acha da cena da orelha decepada em Blue Velvet de David Lynch”?

Sujeito 2: “O impacto da orelha decepada, no início da história, parece quebrar a expectativa dos primeiros segundos da trama, como se fosse um choque inicial, uma pequena quebra. Ela sugere a presença de algo intenso, uma espécie de corpo estranho, um tipo de sensação que acompanha o espectador até o final do filme. Esse objeto, embora não seja representado, permanece sempre nos bastidores, conduzindo as ações de todos os personagens”


Note que a interpretação desse Sujeito 2 não é propriamente uma interpretação, mas algo que abre um furo no signo. É um tipo de estratégia irônica, já que usa a linguagem para ir além dela mesma, ao navegar pelo terreno do desejo, ou seja, de uma pura experiência, de um puro corpo. Essa linguagem, portanto, é cheia de desvios, falhas, ao contrário do modelo sistêmico dos primeiros exemplos. Ela não quer representar nada, ou descrever, mas apenas sugerir toda uma dinâmica complexa de fundo, toda uma trajetória que jamais poderia ser descrita em conceitos. A linguagem, nessa forma de análise, não é um elemento que descreve coisas, como se fosse apenas um dedo indicador, inocentemente apontando para algo lá fora. Ao contrário, ela é muita mais um espaço de convergência, um ponto de encontro de linhas de força, um local onde o mundo deixa seus rastros. Naquela cena em David Lynch, por exemplo, o que a orelha representa? Pois é... a pergunta não faz sentido. Assim como o MacGuffin em Hitchcock (o objeto que regula o destino da trama), os significantes do filme não precisam de um significado, já que a palavra não precisa de seu correspondente. Elas são definidas pelo seu movimento, pela capacidade que possuem de impactar na trama, transformando nossas percepções. A orelha é um tipo de porta de entrada, um convite do diretor ao seu universo cinematográfico, uma espécie de assinatura, digamos assim. Ela não representa nada, sendo apenas um choque que reestrutura nossas categorias, principalmente aquelas mais fundamentais. Por isso que precisamos tanto aprender a ouvir, já que o ponto decisivo nessa história toda não é apenas o respeito a um simples filme, mas ao outro que tem algo importante a dizer, ainda que seja doloroso escutar.


Referência da Imagem:

https://okdiario.com/curiosidades/2017/02/07/5-formas-inteligente-cientificamente-probadas-730673

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