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Foto do escritorThiago Araujo Pinho

NIETZSCHE NO PAGODE BAIANO: POR QUE NOSSA MÚSICA É GENIAL?


Em um mundo encharcado de palavras, cheio de sílabas conectadas, é comum acreditar que o sentido venha das profundezas da linguagem, naquilo que carrega dentro de si, sendo um tipo de ponte entre sujeito e mundo. Confiamos muito no significado, naquilo que as palavras carregam, no que representam, como se essa coisa realmente existisse, ou fosse tão óbvia assim. Ao passar um pente fino na linguagem, e na forma como a cadeia de significantes se articula ao longo do tempo, é possível perceber que esse tal de significado ou é vago demais, muito vazio e sem substância, ou contraditório, impossível de ser compreendido, ou, ainda, inexistente, como se fosse alguma fantasia, algo que jamais existiu. O significado é uma ficção, uma miragem diante dos olhos, ainda que seja difícil de aceitar, principalmente porque, mesmo enquanto miragem, continua orientando meu comportamento, como acontece numa conversa qualquer entre duas pessoas.


Com a música, sem nenhuma surpresa, o sentido é sempre atravessado pela linguagem, por suas mensagens profundas e poéticas, a exemplo da MPB com sua letra sofisticada, cheia de sutileza, contorno e sabor, quase como um vinho caro apreciado por um sommelier. No universo da Música "Popular" Brasileira o corpo quase não aparece, deixando passar apenas uma mente que contempla, analisa e interpreta. O ouvido, a escuta, também não importa, sendo apenas uma ponte que conecta as ondas sonoras ao cérebro, apenas um meio que aponta para algum conceito, alguma representação. Com a MPB, eu apenas mergulho no universo das palavras, viajando em imagens, ideias e memórias, sem nada muito mais radical envolvido. Meu corpo pode até agir, mas sempre dentro de limites, sempre recebendo ordens de uma instância superior, ou seja, nossa querida mente e nossa preciosa linguagem. Corpo aqui não transborda, não sai do controle, não tem energia, mesmo quando grandes emoções brotam das preciosas palavras, afinal, preciso manter as aparências, a máscara conveniente que construí ao longo dos anos, desde que me lembro.


A grande aristocracia cultural, aqueles seres especiais que conhecem de perto o Belo e o Sublime, sempre fizeram piada da música baiana, afirmando que é monossilábica, cheia de “Aê, Aê, Aê, Aê, Ê, Ê, Ê, Ô,Ô, Ô, Ô, Ô, Ô”. Esse uso limitado das palavras, de conceitos, esse descuido com as grandes ideias e profundas interpretações, soa como um problema, como uma fraqueza diante da estrutura poética da MPB. Mas será mesmo assim, ou talvez exista aqui algo interessante, algo talvez genial? E se, por acaso, a história for justamente o contrário, e se o pagode, e seus percussionistas, forem tão bons, mas tão bons, que conseguem se comunicar de uma forma direta, sem mediações, através de um puro corpo, e nada mais? E se o vocabulário sofisticado da MPB sugerir, no fundo, uma fraqueza de sentido, ao precisar o tempo todo da linguagem como veículo, quando o corpo poderia ser mais atraente e significativo. Quanto mais a linguagem é usada, mais o corpo é dispensável, mais o ouvinte é soterrado por camadas de conceitos, teorias, termos, etc. O pagode baiano, ao contrário, consegue ir além, consegue resgatar o sentido do mundo como ele é, ainda que muitas vezes sendo grosseiro, sujo, feio, uma mistura de suor e movimento. Minha experiência não é linear como o “Sonho meu” de Maria Betânia, ou mesmo um “Você é linda” de Caetano Veloso, muito pelo contrário. Nenhuma dessas músicas consegue captar a vida, já que falta corpo, falta algo mais, algo além da linearidade, da coerência, da conveniência. O sentido dessa “música popular” atravessa apenas um veículo tradicional, ou seja, a linguagem e seu significado embutido. O corpo que aparece, quando aparece, é um corpo abstrato, romântico, sem aquela pulsação de vida, sem mundo, a não ser aquele conveniente.


O pagode, por incrível que pareça, lembra bastante a música clássica de Wagner, o seu “Anel de Nibelungo”, com suas quatro gigantescas óperas, depois analisadas por Nietzsche em seus escritos. Essa proximidade não é dada pelo arranjo musical propriamente dito, não pelos seus instrumentos, mas por colocar a linguagem sempre em segundo plano, dando destaque ao corpo, ao ritmo, ao impacto, e sua capacidade de trazer à tona a vida em seu puro movimento, ainda que contraditório, doloroso e angustiante. Minha experiência não é conceitual, teórica, interpretativa, conveniente, mas sim espontânea, complexa e de difícil nomeação. Ao trazer o sentido em palavras, a MPB perde a chance de falar da vida, de uma vida que não é bem ajustada, bem encadeada, mas uma vida transbordante, repleta de um corpo intenso, às vezes feio em seus movimentos, às vezes mal cheiroso, em certas situações, ou pervertido, quando menos se espera. Minha experiência não é um pôr do sol na praia da barra, com maré ondulando no ritmo dos cabelos da morena; minha experiência, ao contrário, é o calor do dia-a-dia, o seu ritmo alucinado, uma mistura de insegurança, prazer, fofocas, tudo isso ao sabor das jornadas de trabalho, das conversas de corredor, do cheiro de suor nos ônibus em horário de pico, dos desentendimentos, ou seja, ao sabor de um corpo, de um fluxo.


Por que o carnaval baiano é é tão famoso? Talvez seja por conta da ignorância do povo, que não sabe apreciar a verdadeira musica- pensa o aristocrata, aquele com nariz em pé. Meu argumento segue outro rumo, sendo justamente o contrário do que muitos poderiam pensar. Talvez esse povo seja tão genial, tão incrível, que nem precisa mais de linguagem, mas apenas de um corpo que desliza pelas ruas, tocando em outros corpos, ao mesmo tempo que cria um efeito cascata, um tipo de energia que se propaga sem qualquer mediação. Apenas grandes mentes conseguem esse efeito, apenas mentes geniais, incríveis, de outro nível. Mentes limitadas precisam falar, justificar, como o personagem Jean Baptiste Clemance de Camus, em A queda. Personagens assim precisam de malabarismos, de contorções, numa tentativa de comunicar algo. As grandes mentes do carnaval baiano, ao contrário, aprenderam a desconfiar da palavra, criando uma ponte espontânea, leve e intensa entre as pessoas. A letra existe no pagode, mas é coadjuvante, poderia, inclusive, nem existir, já que não é ela o que movimenta aqueles corpos, mas o ritmo intenso, cheio de energia, um fluxo de contato que ultrapassa qualquer fronteira convencional.


Referência da imagem:


http://blogdobozogandu.blogspot.com/2017/02/curiosidades-sobre-o-carnaval-brasileiro.html

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