O mais novo projeto do grupo Vilavox e o primeiro solo interpretado pela atriz Márcia Limma que é também cantora, performer, produtora e membro fundadora do grupo é um espetáculo poderoso, intenso e inquietante.
O discurso presente na peça atualiza o mito grego de Medeia – a partir da narrativa proposta por Eurípides– ao dar corpo e voz a Medeia Negra. Uma voz que ecoa expressando seu grito, preso na garganta por séculos de desmandos, de opressão excludente imposta por um pensamento patriarcalista, colonial, machista, misógino, racista e intolerante presente em nossa formação histórica e que ainda hoje insiste em permanecer atuante na sociedade.
Medeia expõe e escancara suas feridas diante de uma plateia intencionalmente dividida, onde as mulheres sentam de um lado e os homens do outro. Logo na entrada, nós somos convidados a participar com a sugestão de que cada um pode se sentar no lado onde se identificar. O espaço cênico se configura numa espécie de conferência entre masculino e feminino. Um conclave proposto por Medeia para que todos estejam frente a frente, face a face.
No centro do palco, Medeia conclama a todos a sair do lugar comum, principalmente convida aos homens a exercitarem sua capacidade de escuta para perceber todos os males que foram cometidos e que, infelizmente, ainda continuam sendo realizados contra as mulheres, que são convidadas a refletir acerca da potência presente na voz feminina que tem sido tão silenciada.
Na releitura proposta por Márcia Limma que assina a concepção do projeto sob direção de Tânia Farias (do grupo Ói Nóis Aqui Tráveiz –RS), a dramaturgia assinada por Márcio Marciano (Coletivo de Teatro Alfenim-PB) e Daniel Arcades (Grupo Nata – Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas – BA) segue uma estrutura que foge da narrativa linear aristotélica e não se preocupa em contar uma história com começo, meio e fim, mas estabelece uma estética que explora as múltiplas vozes presentes no discurso da personagem em tom confessional, crítico, reflexivo, épico e político.
O projeto teve início em 2009 quando a intérprete participou de uma montagem de Medeia na Escola de Teatro da UFBA. Desde então, Márcia Limma passou a pesquisar sobre o tema e, tamanha sua inquietação que a pesquisa tomou corpo em seu mestrado em Artes Cênicas (PPGAC-UFBA). Fez parte do desenvolvimento de seus estudos a interação com mulheres encarceradas na Penitenciária Lemos Brito, dentro do projeto “Corpos indóceis, Mentes livres”, coordenado por Denise Carrascosa, onde a atriz passou a desenvolver um trabalho de contação de histórias resultando em uma atividade em que as mulheres escreveram cartas para Medeia. Elas tiveram a oportunidade de poder assistir ao espetáculo no dia da estreia no FILTE – Festival Internacional Latino Americano de Teatro da Bahia.
A ação da peça inicia-se. Medeia aparece imponente a realizar um ritual com fogo. Porta em cada mão uma chama incandescente dentro de pequenos potes de barro, chamados de nagés, suspensos acima da cabeça. A trilha que estimula seu caminhar é composta por sua própria voz que emite um som doído em forma de acalanto africano. Tal qual Prometeu, mito grego que rouba o fogo do conhecimento para dar à humanidade, Medeia parece prenunciar, naquele instante, o que está por vir. Seu corpo expressa por meio de danças e gestos sua relação direta com o candomblé e sua preocupação em dar total importância aos antepassados numa dinâmica que conflui para a celebração da energia primal e ancestral.
Seu discurso potencializa uma reverberação do poder que emana das vozes de tantas mulheres: da mulher negra, trans, lésbica, candomblecista; da mãe, irmã, amiga; das mulheres encarceradas e violentadas física e psicologicamente. Vozes inseridas em um contexto cruel de um sistema que oprime. Sua voz é um misto de desabafo, lamento, denúncia, conclamação, apoio e encorajamento.
A potência vocal de Márcia Limma é impressionante. Ela consegue expressar com tamanha organicidade, força e visceralidade, nuances que vão do grito sufocado da mulher bárbara ao brilho e intensidade de seu canto lírico presente nas canções que integram o espetáculo. Vale ressaltar sua interpretação para um trecho da música “Strange Fruit”, canção conhecida na voz de Billie Holiday e Nina Simone e que é considerada um símbolo contra o racismo nos Estados Unidos, pois denuncia a história de negros que foram brutalmente assassinados.
Tão intenso e bem elaborado também é o trabalho de composição e execução musical produzido por Roberto Brito. Ele soube conduzir muito bem, tanto em seu processo criativo como na execução, uma forte dramaticidade, criando atmosferas que dialogaram de maneira harmoniosa com a ação do monólogo.
Em determinado momento da peça, a personagem convida, com muita veemência e coragem, a todas as mulheres a levantarem. Antes disso, durante o transcorrer da ação, Medeia se aproxima da plateia de mulheres, interage com elas e apoia a cabeça sobre o colo de uma espectadora. Esta, de pronto, a acolhe com todo o cuidado, para além da relação público/personagem.
Percebi que houve ali naquele momento uma identificação imediata, uma espécie de compaixão da espectadora pelo sofrimento de Medeia que se projeta na expansão consciente do reconhecimento da dor de todas as mulheres que a personagem representa. Esse pequeno detalhe me estimula a pensar o quão potente se apresenta esse gesto que parece revelar a capacidade de sororidade presente nas mulheres que assistiam e que refletia nos homens como uma maneira de se colocar no lugar do outro (nesse caso da outra), uma espécie de reflexo como num espelho.
Medeia sensibiliza a todos, pois eu me senti muito comovido nesse instante e compreendi que é mais do que urgente uma atitude. Que é preciso evitarmos o descaso e acolhermos, lutarmos para desconstruir esses discursos hegemônicos ainda presentes.
Em um momento tão tenso na conjuntura brasileira em que os ânimos estão acirrados, em que há a presença de um embate ideológico e partidarista onde os extremismos chegaram ao seu ápice quase que irracional, e diante de um contexto social em que o discurso de ódio se intensifica, o espetáculo Medeia Negra nos estimula à reflexão acerca do silenciamento, da opressão, do preconceito e da violência contra a mulher negra.
Num grito de coragem e libertação em forma de chamado, Medeia nos convoca a despertar a consciência para enxergarmos além e de estarmos mais presentes em nossa sociedade reconhecendo a força e o legado da mulher negra na luta pelo respeito às diferenças. É preciso cada vez mais buscarmos o exercício do diálogo.
Quem não viu ainda terá a chance de conferir, pois o espetáculo continua em cartaz de sexta a domingo até o dia 23/09 no Espaço Cultural da Barroquinha, às 19h. Vale muito a pena.
Foto: Caio Lírio.
Fonte: https://www.facebook.com/medeianegra