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Foto do escritorAlan Rangel

A banalização da imoralidade

A imoralidade move a história humana! O ato imoral bagunça com a estrutura moral que tenta apresentar-se como última forma de coesão social. O ato imoral tem a capacidade de ferir a consciência coletiva, que acredita ser coesa, segura, estável. Se há ações imorais é porque nem todos os indivíduos estão integrados totalmente com as normas, costumes e padrões de determinada sociedade. Por exemplo, a ousadia de grandes filósofos e cientistas da Idade Média, contra as ideias religiosas cristãs de superioridade da fé sobre a razão, sacudiu os alicerces de uma sociedade ocidental europeia que acreditava que o último estágio da humanidade eram aqueles séculos de dominação religiosa. O problema é que na contemporaneidade virou moda ser imoral. O excesso de imoralidade, reflexo da liberdade moderna, leva a uma série de patologias sociais.


Aquilo que é considerado como imoral em um determinado contexto social, pode variar no tempo e no espaço. A história da humanidade mostra que foi preciso que um ou mais pessoas tivessem que transgredir os padrões normativos, sofrendo diferentes graus de coerção, para mostrar que nem tudo é maravilhoso e coerente. Dois exemplos disso foram Sócrates e Jesus, considerados como sujeitos imorais em suas épocas.


Pensar uma sociedade perfeita sempre foi um problema, porque na prática nunca saberemos o que é isto, pelo simples fato de que ela nunca existiu. Um ato de rebeldia já não é um sinal de que nem tudo está perfeito? Uma única pessoa que se rebela contra todo um conjunto de práticas já não é um sinal de fragilidade daquele tipo de sociedade? Não é um questionamento ao status quo? Esse é o perigo da igualdade. Pensem: se de fato acreditarmos que chegamos todos ao ápice da civilização, ou seja, de que alcançamos a forma mais harmônica de convivência, qualquer traço de atrevimento e questionamento de um indivíduo faz sê-lo uma aberração, uma laranja podre? Ou já não devemos questionar a cristalização das normas?


É aí que a questão da liberdade sempre foi um perigo para as comunidades antigas e os Estados constituídos, pois ela está atrelada ao pensamento, no sentido de que não há limites para pensar. Esta é a única liberdade que parece ser impossível de ser eliminada. Como seres dotados de razão, nós, humanos, não sabemos o limite do pensamento, e de onde ela se origina. E este é o grande mistério ainda não resolvido pela ciência. O que é a mente? Será que ela é apenas produto da biologia, estimulado pelo exterior? Ou a mente é algo que não está atrelada ao corpo? Quem sabe podemos estar no sonho de alguém? É difícil saber. E nem pretendo me alongar neste ponto.


Voltando a questão da imoralidade. Esta é o motor da história, e não a luta de classes. O marxismo que me perdoe! Um ato imoral não é determinado por uma única questão econômica, política, religiosa, artística, filosófica. A humanidade tem caminhado a partir de várias infrações cometidas por pessoas que não se encaixavam no quebra cabeça pseudo perfeito de um tipo de sociabilidade. Muitos pensaram além do tempo. Obviamente, ato imoral não é sinônimo de progresso, pois sempre corre-se o risco de retroceder à barbárie. O ato imoral pode abalar as estruturas, desde que seja contagiante. O contágio é fundamental para impulsionar rupturas das formas de pensar, agir e sentir, no presente ou no futuro.


A imoralidade vai de encontro aos padrões conservadores. O pensamento conservador não nega mudanças, como muitas pessoas leigas acreditam. Mas o conservador tem muito receio de andar no escuro, pois, ao correr tal risco, irrompe-se numa possibilidade de tornar caótica e mais desajustada a ordem atual, sendo possível o aumento negativo de todas as estatísticas. Quem assistiu ao filme, a Vila, sabe bem o que digo, pois a superstição, a ignorância e ausência de reflexão, ali tratada, era a melhor forma de manter a estabilidade social.


Mas será que vale a pena a ignorância, a ausência de liberdade, os atos irrefletidos para salvaguardar a coesão social? Muitos acreditam que sim. A ação por hábito, irrefletida, impulsiona a estabilidade e conserva a sociedade contra o próprio indivíduo, que se não nasce demônio também não nasce anjo. Theodore Dalrymple vai defender o preconceito como restrição social e moral secular importantes contra o individualismo radical, que acredita ser autossuficiente. O autor termina o seu livro com a seguinte mensagem:


"É preciso ter capacidade de discernimento para saber quando um preconceito deve ser mantido e quando deve ser abandonado. Os preconceitos são como amizades: devem ser mantidos em bom estado. Por vezes, amigos se distanciam, e por vezes o mesmo deve acontecer aos homens diante de certos preconceitos, mas a amizade frequentemente se aprofunda com a idade e a experiência, e o mesmo deve acontecer com alguns preconceitos. Eles são aquilo que dão caráter às pessoas, mantendo-as juntas. Não podemos viver sem eles". (DALRYMPLE, 2015, p.138). [1]


Trouxe a citação acima, mas considero também uma crítica: o que pode mensurar o limite do que deve ou não ser preservado para a sobrevivência da sociedade? Quem estabelece a viabilidade dos preconceitos “bons e ruins”? É bem complicado chegar a uma resposta definitiva.


Seja como for, a sociedade contemporânea tem dotado cada vez mais os indivíduos com uma irrefreada autonomia, que, como afirma o filósofo polonês, Zygmunt Bauman, leva a um mundo cada vez mais líquido e impulsionado por um forte desregramento do sentido de comunidade. "É com um mundo tão crescentemente incerto que seus habitantes se debatem para lutar corpo a corpo, e é para viver em tal mundo que eles concentram as energias e desejam preparar-se, quando procuraram febrilmente as habilidades com que "tirem o melhor partido" de sua liberdade talvez não escolhida, mas real demais" (BAUMAN, 1998, p.251). [2]


A questão de fundo é a crítica a um desconstrutivismo em massa; ou a banalização da imoralidade, levando ao individualismo perigoso, que tenta desprezar tudo que o passado legou, por exemplo as formas de manutenção da ordem social e criação de sentido para a vida das pessoas. Martelar todas as morais, pelo excesso de desobediência, que a liberdade de expressão proporciona, pode elevar as anomias sociais. A propagação de uma ética de desconstrução acaba construindo indivíduos imorais em massa, como ocorre atualmente. Não seria melhor que isso fosse algo mais espontâneo e menos incentivada por ideologias que tentam negar tudo que foi herdado, jogando-as nas chamas? As grandes mudanças e paradigmas das sociedades foram impulsionadas por poucos indivíduos, sim, e não por uma maioria.


Eu acredito na liberdade mais espontânea, não em uma liberdade que leva a um egoísmo extremo, muitas vezes banalizado pelas ideias de intelectuais e pseudo intelectuais. A liberdade de pensamento não é sinônimo de ideias enriquecedoras, de grandes reflexões. Algumas ideias, externalizadas em atos, podem fazer retroceder mil anos de civilização, destruindo as inibições ou supressões instintivas agressivas, cruéis e brutais, conquistadas pelos homens contra si mesmos, como disse o psicanalista Freud.


Confesso estar de acordo que o excesso de liberdade, que leva a banalização da imoralidade, pode criar todo tipo de monstruosidade. Esta era a mesma questão de Dostoievsky: “Partindo da liberdade ilimitada, chego ao despotismo ilimitado". Shigalev, em Os Demónios.


Em paralelo, podemos pensar também no conceito de liberdade a partir de Espinosa, na obra Ética. Para o filósofo, na realidade, são muitos poucos os que atingem um grau de consciência que se possam dizer livres, ou quase, pois, na prática, a liberdade completa é uma ilusão. Muitos de nossos atos imorais não são estimulados por nós, mas pelos outros, pelas afecções externas.

Colocar o indivíduo como centro de toda a vida social, soberano da razão e das desconstruções, desprezando tudo que foi herdado, como se tudo que virá será inexoravelmente positivo, é um grande perigo para a sobrevivência social.


Referências


[1] DALRYMPLE, Theodore. Em defesa do preconceito: a necessidade de ter ideias preconcebidas. Tradução Maurício G. Righi - 1 ed. São Paulo: É realizações, 2015.

[2] BAUMAN, Zygmunt. O Mal- Estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.


Link da imagem


http://wellocontestador.blogspot.com/2016/07/o-paradoxo-do-individualismo-radical.html



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