Estrelas Além do Tempo sem dúvida é um título interessante. A ideia de algo “além do tempo” sempre soa como algo inovador, inteligente. No entanto, o título original do longa é Hidden Figures, Figuras Escondidas, numa tradução livre. O filme, dirigido por Theodore Melfi, é baseado na história real de Katherine Coleman Goble Johnson (Taraji P. Henson), Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e Mary Jackson (Janelle Monáe), três cientistas negras que trabalharam na NASA durante a efervescente corrida espacial da década de 60 e 70, em plena polarização da Guerra Fria.
Desde a infância, Katherine se destacou por um raciocínio lógico e matemático extremamente afiado. Seus professores, reconhecendo seu talento, convencem e auxiliam os Coleman a transferirem a garota a um ginasial em West Virginia, pulando duas séries. Katherine tinha apenas 10 anos quando isso aconteceu. “You have to see what she become” / “Vocês têm que ver o que ela irá se tornar” – Essas palavras da professora de Katherine se tornam quase proféticas, anunciando o caminho que ela irá trilhar quando, trinta anos depois, se torna uma das mais brilhantes cientistas “matemáticas” (computer) da NASA, a recém-criada agência espacial norte-americana.
A apresentação das personagens principais é icônica e demonstra boa parte do suporte ideológico sobre o qual a trama se desenvolve: as três mulheres no meio da estrada consertando o carro, a caminho para a Langley Research Center sede da NASA em Hampton, Virginia. O clima descontraído entre as três é quebrado pela chegada de um policial que as questiona e silenciosamente duvida quando o informam sua posição na NASA. É importante compreender que este filme se passa num dos momentos mais tensos das questões raciais dos Estados Unidos. Em pleno período segregacionista, não faltavam motivos para aquelas mulheres negras se sentirem apreensivas na presença de um oficial de polícia branco. Os comentários do policial acerca da “espionagem russa” e do imperativo nacional de “colocar alguém no espaço antes dos comunistas” demonstram a idiossincrasia da opinião pública dos estadunidenses, crentes na legitimidade dos EUA como país “defensor da liberdade”.
Numa curta, porém bela sequência em CG, o filme nos mostra o Korabl-Sputnik 4, uma nave soviética lançada em 1961 contendo um manequim humano e alguns seres vivos, como a cadela Chernushka, alguns camundongos e um porquinho da Índia. Esse evento provoca intensa agitação na esfera política e científica dos EUA. A ideia de que “não se pode justificar um programa espacial que não põe nada no espaço” legitimou o intenso investimento financeiro e humano na NASA. A “conquista do espaço” foi uma ideologia amplamente difundida durante os anos 60, durante a disputa irracional entre os Estados Unidos e a URSS por controle geopolítico e influência no sistema global. Havia a noção de que quem chegasse primeiro ao espaço, ditaria as regras do jogo.
É nesse contexto delicado que as três mulheres negras se inserem. Mas elas foram três dentre dezenas. As computers eram as pessoas que realizavam manualmente os cálculos complexos do programa espacial. No West Computing Centre havia a sala das “Colored Computers” / “Matemáticas de cor”, onde todas as mulheres negras trabalhavam. Essa é uma das inconsistências da chamada “inserção” étnica praticada na NASA e em quase todas as instituições públicas norte-americanas. O interesse se encontrava na produção intelectual dessas mulheres, sem reconhecimento algum ao trabalho delas. A posição subalternizada de Katherine, Dorothy e Mary fica evidente em diversos momentos, nos quais elas foram humilhadas por serem mulheres e negras num ambiente tradicionalmente racista e machista.
O filme se desenvolve demonstrando a luta, subversão e superação das três mulheres em busca de respeito, reconhecimento e inserção real nos ambientes que conquistaram. Essas lutas não foram sem dor e não foram fáceis. Katherine fora a muito custo reconhecida como uma mente fundamental ao programa espacial, tendo desenvolvido diversos dos métodos matemáticos para calcular as trajetórias orbitais e de reentrada atmosférica dos veículos espaciais. Dorothy foi extremamente visionária ao notar a necessidade de atualização científica, que o desenvolvimento tecnológico demandaria, com o surgimento dos primeiros computadores, como o IBM, que ela aprendeu sozinha a manipular com maestria, ensinando prontamente às suas companheiras matemáticas. Mary enfrentou a regulamentação da NASA, a resistência de quem amava e o sistema judicial racista para ser a primeira mulher a frequentar um curso de engenharia numa universidade só para brancos, se tornando a primeira engenheira do programa espacial, desenvolvendo técnicas essenciais à reentrada de veículos na atmosfera.
A luta dessas mulheres é histórica por si. Elas enfrentaram uma conjuntura que as concebia como força de trabalho submissa e passiva, conquistando seu espaço e reconhecimento. O longa faz questão de evidenciar aspectos da personalidade e intimidade das personagens que demonstram a humildade, perseverança e fé que elas possuíam. Contudo, a própria história da luta dos negros por direitos civis nos EUA e em outras regiões do planeta, além do contexto contemporâneo, indicam um triste fenômeno que se expressa no filme.
A inserção da população negra, assim como a de diversos outros segmentos sociais historicamente oprimidos e não-hegemônicos, se dá como uma força de trabalho voltada para o fortalecimento das ideologias dominantes. O contexto geopolítico dos EUA, ao longo do século XX, e, especialmente, durante a Guerra Fria se sustentou no fortalecimento da ideologia patriótica meticulosamente cultivada pelas administrações do país a partir da indústria do entretenimento e mídia, da produção acadêmica e do discurso político de liderança internacional, etc. A lógica dominante foi a contraposição hostil entre um modelo de pretensa liberdade, materializada pretensamente na nação “americana” e de um modelo opressivo, corrupto e decadente, materializado na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS.
O filme, nesse aspecto, se circunscreve no discurso patriótico viciado nas produções de Hollywood. A fala de Al Harrison (Kevin Costner), líder fictício do programa espacial, perante uma comissão do governo de Kennedy; a voz do presidente exortando o sucesso do primeiro astronauta do país no espaço sobre a imagem da passeata; e diversas outras cenas, tipificam esse viés pouco crítico ao contexto retratado, no qual os EUA se propõem a serem os primeiros no espaço, assumindo uma aura de causa justa e nobre. Além disso, cenas com forte peso simbólico, como a passagem do giz de Harrison a Katherine, durante uma importante reunião no Pentágono, sugerem sem dúvida um tipo de reconhecimento às suas habilidades, no entanto, fazem emergir questionamentos sobre quais forças ela estaria, inadvertidamente, servindo.
Para além da inserção profissional que aquelas mulheres conquistaram, quais foram as motivações da NASA para tal? A decepção sentida pelas personagens reagindo à notícia do voo de Yuri Gagárin e a frase de Katherine “I guess that puts us behind the curve” / “Acho que isso nos deixa pra trás” demonstram o alinhamento ideológico daquelas pessoas que, mesmo em meio à luta por direitos civis e a exigência por dignidade, seguiram a liderança nacional numa disputa que serve, exclusivamente, aos interesses imperialistas tradicionais dos Estados Unidos.
A cantora norte-americana Lauryn Hill expressa esse fenômeno na sua composição¹ Pai, Perdoa-os / Forgive Them Father [versos em tradução livre]: Cuidado com os falsos motivos dos outros / Tenha cuidado com aqueles que fingem ser irmãos / ... / Eles dizem todas as coisas certas, para ganhar posição / Então usam tua bondade como munição / Para te derrubar em nome da ambição.
Estrelas Além do Tempo é um filme em camadas. Indicado a todas e todos que desejem entretenimento com potencial reflexivo e inspirador. É emocionante acompanhar a luta dessas mulheres num período tão singular da história. Os homens que assistirem só poderão imaginar o que as histórias de Katherine, Dorothy e Mary podem significar à subjetividade de uma mulher. De todo modo, deve ser uma experiência ainda mais rica. Para as mentes inquietas e críticas, o filme é um prato cheio para discussões importantes e pouco abordadas no cinema. As histórias delas demonstram que mesmo as mais rígidas conjunturas sociais podem (e devem) ser questionadas, e isso não pode ser escondido.
¹Lauryn Hill é uma cantora, compositora, produtora e atriz norte-americana. Música Father, Forgive Them, faixa 10 do álbum The Miseducation of Lauryn Hill, 1998:
Beware the false motives of others
Be careful of those who pretend to be brothers
…
They say all the right things, to gain their position
Then use your kindness as their ammunition
To shoot you down in the name of ambition, they do
Ficha Técnica:
Filme: Estrelas Além do Tempo
Título Original: Hidden Figures
Ano: 2016
Pais de Origem: Estados Unidos
Gênero: Drama/Biografia
Classificação: Livre
Diretor: Theodore Melfi
Atores/atrizes principais:
Taraji P. Henson como Katherine Johnson
Octavia Spencer como Dorothy Vaughan
Janelle Monáe como Mary Jackson
Kevin Costner como Al Harrison
Duração: 127 minutos
Link da imagem: https://www.saraiva.com.br/estrelas-alem-do-tempo-dvd-9442226.html