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POR QUE NINGUÉM DEVE OUVIR MPB? O amor, o desejo e o cu de Freud



O amor sempre se apresenta de uma forma elegante, como um pacote conveniente de experiências, ao menos quando é narrada em novelas, músicas e filmes, seguindo assim uma trilha confortável, bem costurada, sem nenhum traço estranho no meio. Falamos do casal ao pôr do sol, com as mãos dadas, o suspiro emocionado, além de toda uma série de gestos suaves, delicados, sem nunca perder aquela musicalidade das ondas, o seu movimento agradável e poético. Bonito, não é? Apesar da poesia dessas palavras, falta algo nessa história toda, algo que esconderam de nós, algo não tão agradável assim. Vamos subir um pouco as escadas de Dorian Gray, vamos ver o que tem lá em cima, no sótão. Talvez um outro lado do corpo permanece guardada, ainda que todos saibam da sua existência. O silêncio, acompanhado da hipocrisia, é a grande regra aqui, no final das contas, um tipo de princípio que todos seguem, mesmo que nenhuma palavra seja dita, mesmo que nenhum olhar seja trocado.


O desejo, não sendo nada conveniente, ainda é um grande tabu, um obstáculo, um silêncio, a não ser quando é domesticado pela narrativa amorosa, tornando seus contornos algo bem suave, linear e significativo. Esse mesmo desejo, ao contrário, pode também ser ocultado, reprimido, tudo isso para preservar a ilusão de um amor sem manchas, sem suor, sem fluidos. Como bem dizia Freud, em uma de suas conferências: é sempre traumático descobrir que seu grande amor tem cu. Existe um grande pacto de silêncio aqui, fazendo com que nossa curiosidade jamais chegue no banheiro ou no quarto dos nossos familiares, amigos e conhecidos. O que vão fazer lá? Shhhhhhh... silêncio!!!! Todo mundo sabe, todo mundo faz, todo mundo sabe que todo mundo sabe, mas, enfim, Shhhhh... silêncio!!!!


Em filmes pornôs, as histórias praticamente não existem, são bobas, assim como a performance dos atores. Um encanador, malhado, aparece na porta de uma dona de casa qualquer. Enquanto conserta o vazamento da pia, a mulher pergunta se não existe algum outro buraco para ser consertado. O sexo começa assim, rápido, grosseiro, sem nenhum tipo de adorno. Alguém mais ingênuo, olhando de uma forma mais superficial, poderia pensar que tudo isso é um problema técnico, uma falta de habilidade por parte das figuras envolvidas, como os diretores, atores, edição. Ao contrário do que poderiam imaginar, a narrativa boba dos filmes pornôs é completamente intencional, já que é proibido a existência de qualquer investimento afetivo nas cenas. Não é permitido que o amor se misture com aqueles instantes de sexo hardcore, preservando assim a ilusão de um dualismo entre esses dois universos, o do amor e do desejo. Uma coisa seria o pôr do sol, com as mãos dadas, na beira da praia, e outra bem diferente seria uma cena embaraçosa de sexo. Será mesmo assim, ou talvez essas duas dimensões sejam complementares, mantidas separadas apenas por uma grande fantasia, uma espécie de pacto hipócrita entre os indivíduos?


A MPB, enquanto estrutura, preserva o mesmo percurso de qualquer filme pornô, apenas invertendo os vetores. O que é preservado, agora, é apenas o investimento afetivo, o amor, e não os instantes de descontrole do desejo, os seus momentos até de embaraço, ou seja, o hardcore não é preservado, nem mesmo como sonho, nem mesmo enquanto fantasia. Da mesma maneira que no filme pornô, o dualismo se preserva, a crença de que o contato amoroso nada tem a ver com seu contraponto selvagem, suado, fedido, estranho. Como se o amor não tivesse um vínculo com a urina, o sêmen, o descontrole, além de toda uma série de estratégias nem um pouco agradáveis de falar, como quando o parceiro (a) transforma o outro em um puro objeto de prazer, ou mesmo quando adiciona fantasias estranhas em um contato aparentemente espontâneo.


No ápice do desejo, no limite do próprio corpo, o amor perde sua mascara conveniente, ao deixar sua narrativa bem encadeada. O amor começa a perceber traços desagradáveis, estranhos, embaraçosos, como acontece com qualquer indivíduo saudável. Se a pornografia é um extremo da experiência, uma dimensão unilateral, a MPB seria o outro extremo, também unilateral. Nesse sentido, essas duas esferas desempenham um papel conservador, ao oferecer um retrato distorcido da realidade, impedindo uma prática bem direcionada. Para ser mais fiel ao mundo, e ao modo como os corpos reagem, seria mais interessante imaginar um cruzamento entre esses dois universos, talvez resgatando um pouco do descontrole desejante, de um lado, e a poesia da MPB, do outro.


Em novelas, é curioso como o que também permanece é aquele breve instante de investimento afetivo, o amor, enquanto o sexo, e seus contornos estranhos, permanece ocultado, principalmente através de um corte na edição. Quando a coisa começa a esquentar, a cena é logo cortada e o casal é visto horas depois na cama abraçados, deixando um vácuo conveniente ali. Muitos poderiam de dizer que a cena é cortada por conta das crianças, por conta do conteúdo das cenas. Eu diria que não é bem assim. As cenas são cortadas não por conta das crianças, mas por causa dos próprios adultos. A proposta é preservar a ilusão que circunda o amor, a sua pureza, ou seja, é preciso preservar um dualismo existente entre os sentimentos e o desejo. A estranheza desejante poderia manchar a expectativa criada, poderia manchar o pôr do sol, as ondas do mar, e toda aquela poesia conveniente. A novela, nesse sentido, desempenha o mesmo papel que a MPB, mantendo uma estrutura dualista, ao mesmo tempo que distorce a realidade em seu imediato, naquela dimensão mais grotesca, mas nem por isso mentirosa.


Na filosofia, muitos imaginam que o Deus espinozano, aquele Deus imanente, incorporado ao próprio mundo, é apenas o pôr do sol, a maré do mar, ou vento que sopra e balança os cabelos da morena. Sem dúvida, não deixa de ser isso também, mas não apenas. O Deus de Espinoza também é o sémen expelido, o sangue menstrual, o desejo descontrolado e embaraçoso. Tudo isso faz parte de uma mesma ontologia, de um mesmo mundo em fluxo, devendo, portanto, ser afirmado, não importa se conveniente ou não. O mundo é o que ele é, não apenas o seu traço aproveitável, aquele pedaço que pode ser incorporado na minha narrativa. O mundo, assim como o corpo, é um excesso, algo que transborda a minha própria capacidade de compreensão, indo sempre até o limite. Conviver com essas duas esferas não é fácil, mas é o mais prudente. Viver sob ilusões não é uma alternativa, principalmente para aqueles que querem agir sobre o mundo, aqueles mais politizados. A prática política pede por uma noção clara de como as coisas funcionam, ainda que a conveniência não faça parte da história.


Referências Bibliográficas:


http://www.gazetarp.com.br/cultura/noticia/2016/01/11a-edicao-do-festival-nacional-de-mpb-bate-recorde-de-inscricoes.html

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