“Como muita coisa em nossa experiência não pode ser pronunciada de forma acabada e nem comunicada diretamente, há muito tempo elegi o procedimento de revelar o sentido mais profundo ao leitor atento, por meio de configurações que se contrapõem umas às outras e ao mesmo tempo se espelham umas nas outras”.
Goethe em carta a Carl J. L. Iken[1].
O poema dramático Fausto é a obra clássica do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe que expressa, em suas mais de mil páginas, toda a experiência de uma existência, pois o poeta dedicou 60 anos à sua escrita. O próprio autor afirma em Poesia e verdade, que essa composição literária representa o “suma sumarium” de sua vida. Conforme Thomas Mann, a criação de toda uma vida "abrange em seu interior três mil anos de história humana." (MAZZARI, 2007).
Baseada na lenda histórica do doutor Fausto, o autor utilizou diferentes pré-textos (Marlowe, Lessing) para desenvolver a escrita das versões da tragédia: Fausto zero (1772-1775); Fausto, um fragmento (1790); Fausto I (1808) e Fausto II (1832), este último publicado postumamente.
O primeiro contato do autor com o tema do Doutor Fausto se deu em sua infância por meio de uma apresentação de teatro de bonecos. A arte teatral foi responsável pelo despertar criativo do menino e criou um novo mundo que culminou, anos depois, em sua obra-prima.
Considerado uma figura importante na sua época, o Fausto histórico nasceu no fim do século XV (É a mesma época de Galileu e de Nostradamus). Doutor Johannes Georg Faust era um médico e alquimista que atuava em várias áreas e por conta disso adquiriu fama e fortuna por toda a Alemanha. De acordo com a tradição oral, sua ambição era conquistar o saber universal, contudo decepcionado com o progresso do empenho humano e obcecado pelo desejo de adquirir mais conhecimento, decide então fazer um pacto com o diabo. Naquela época, todo intelectual que tinha a possibilidade através da especulação da ciência de contestar o status quo, era condenado pela Igreja e era dito que essa pessoa tinha um pacto com o diabo.
Assim como na lenda do doutor Fausto, na obra de Goethe a dúvida em relação a todos os estudos científicos da sua época é o elemento que conduz a ação do protagonista. Logo no primeiro monólogo brota uma inquietante necessidade de questionar qual o sentido da vida, o que ela tem em seu cerne mais profundo. O questionamento o impulsiona a embarcar numa aventura em busca de resposta para sua indagação se valendo até mesmo de especulações através da magia para entrar em contato com a figura do diabo – chamado na obra de Mefistófeles – que lhe impõe um pacto, no intuito de solucionar sua dúvida.
Quando o pacto é sugerido, Fausto mergulha numa depressão e demonstra seu desespero em face da condição humana. Contudo, ele não fica satisfeito e desafia Mefisto a aceitar uma aposta que é a mola de toda a ação: se Fausto chegar ao ponto de não ter mais nenhuma dúvida, então Mefisto poderá levar a sua alma. Mefisto aceita a aposta e busca satisfazer Fausto, o homem que indaga.
Na apresentação da obra traduzida por Jenny Klabin Segall, Mazzari afirma que o poema trágico, em suas duas partes, pode ser considerado como o “drama da humanidade”, sendo que o trabalho de Goethe é o de elevar a sua personagem à condição de representante do gênero humano. (MAZZARI, 2004, p. 16).
Fausto é conduzido primeiro pelo pequeno mundo, que é o mundo das sensações, no Fausto I, e depois pelo grande mundo, o mundo da Arte, o mundo da Antiguidade, no Fausto II. Na velhice, já destituído de forças, ele tem a visão de homens batalhando para conquistar uma terra. No epílogo, ele realmente consegue alcançar os céus através do eterno feminino representado pelo amor que se torna quase santificado.
O Fausto é uma personagem que representa o humano em sua totalidade. Ele desafiou a si mesmo em busca do conhecimento para esclarecer qual o sentido de sua existência e busca responder durante a sua jornada no percurso do poema, qual o sentido da vida ao trazer sua bagagem cultural e enfrentar a si mesmo numa luta para encontrar a liberdade da consciência de si diante do mundo.
Em Prólogo no teatro, no Fausto, o personagem Poeta diz: “Nada eu tinha e o bastante me era, o anelo da verdade e o gosto da quimera” (GOETHE, 2014, p. 49). Este trecho sintetiza uma máxima presente no discurso do personagem: remete à valoração dada ao essencial e também faz referência à importância dada à imaginação no processo criativo. O prólogo representa a reflexão do autor acerca do papel da arte na construção da existência humana.
No Fausto, Goethe utiliza sempre uma maneira de explicitar em suas reflexões através da poesia, o embate entre duas forças opostas: clássico-romântico, esquerda/direita, bem/mal, fantasia/realidade, aparência/essência. A presença de oximoros em contraposição que se espelham um nos outros. O autor apresenta um personagem em sua completa inquietação diante da vida que não se contenta com o estabelecido e busca exercitar seu poder de indagação sobre si mesmo e sobre o mundo.
Uma construção arquetípica que adquire significado universal, pois Fausto representa a materialização do mito do homem que busca entender o sentido da vida ao empreender uma jornada perigosa no intuito de se aproximar do eterno e envolver-se com o mistério. Nesse sentido, Heise (2010) assevera que “sob este aspecto, o mito faústico transforma-se em um ‘mito vivo’, um relato que confere modelo para a conduta humana.
O drama em geral é construído de uma maneira que propicia a abertura do desenvolvimento do personagem que é exposto como um objeto demonstrativo da Grande Providência. Ele participa de um jogo onde deverá provar através de sua própria experiência, os valores de toda a criação e a obra expressa o esforço dele de entender a totalidade do universo, a função do mal, o destino do homem.
Assim como Fausto, o ser humano na contemporaneidade continua à procura do sentido da vida e anda em busca de respostas. Vive sendo o tempo inteiro desafiado a dominar o conhecimento, as tecnologias e ciências e insatisfeito, segue à procura de preencher o vazio cada vez mais com substitutos paliativos oferecidos pelo consumismo exagerado. Faz parte de um grande mecanismo que, aos poucos, está a produzir a desumanização do humano.
Goethe em sua obra genial deixa uma pista importante que serve de reflexão para todos nós: a vida para ter sentido precisa estar em constante movimento. Em sua imensa complexidade, a vida humana é o conjunto de contraposições que se espelham. Daí a importância de observarmos qual o sentido da existência, para que interagirmos uns com os outros respeitando as diferenças.
Diante de uma sociedade onde impera os extremismos radicais, onde não existe diálogo, é preciso refletir sobre a importância de se colocar no lugar do outro. Somos conhecimento, mas também poesia, arte e espírito. Por fim, é preciso agir para conseguirmos criar a transformação nos valendo de todo conhecimento, seja artístico, intelectual, espiritual para descobrirmos a potência humana que há em cada um de nós.
Referências bibliográficas:
HEISE, Eloá. Fausto: a busca pelo absoluto. In: Revista Cult. São Paulo, mar. 2010. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/fausto-a-busca-pelo-absoluto/>. Acesso em: 10 jun. 2018.
MAZZARI, Marcus Vinicius. Apresentação. In: GOETHE, J.W. Von. Fausto: uma tragédia – primeira parte. São Paulo: Editora 34, 2004.
VON GOETHE, J.W.- Memórias: Poesia e verdade, 2. ed., Brasília: Universidade de Brasília, 1986.
VON GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto: uma tragédia (primeira parte). São Paulo: Ed. 34, 2004.
_______________________ Fausto: uma tragédia (segunda parte). São Paulo: Ed. 34, 2007
[1] Goethe em carta de 27 de setembro de 1827 a Carl J. L. Iken. In: GOETHE, J.W. Apresentação do Fausto II por Marcus Vinicius Mazzari.
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