Uma pesquisa recente feita pelo Instituto IPSOS e divulgada pela BBC Brasil, foi constatado um dado preocupante, porém não surpreendente: dois em cada três brasileiros entrevistados acreditam que os direitos humanos defendem mais os bandidos do que as vítimas. Entre os entrevistados, 66% afirmam que os direitos humanos defendem os criminosos, 20% disseram que defendem as vítimas e 14% não souberam responder. Numa outra pergunta, indagados acerca de se eram contra ou a favor dos direitos humanos, 63% eram a favor e 21% contra, 16% não sabiam o que responder. Uma confusão se evidencia, afinal, muitos dos respondentes aparentemente favoráveis aos direitos humanos parecem percebê-los como fonte de defesa de bandidos. Como entender essa aparente contradição?
Uma das possíveis razões apontadas pela pesquisa é a compreensão equivocada (ou ausência dessa compreensão) do brasileiro acerca do que significam os direitos humanos ou para o que de fato eles servem. Em terras tupiniquins, onde a máxima do “bandido bom é bandido morto” ganhou cada vez mais adeptos, criou-se uma dicotomia entre vítimas e bandidos fundamentada num entendimento raso das garantias fundamentais que um Estado Democrático de Direito deve conceder aos seus cidadãos, sem as quais inúmeros retrocessos e atentados contra a vida e a dignidade humanas podem ser perpetrados impunemente. Via de regra, as pessoas apoiam uma concepção do que entendem por direitos humanos, contudo elas têm dificuldade de percebê-los na prática, o que acarreta em juízos equivocados sobre a sua aplicabilidade. Devido a essa disjunção entre a abstração teórica do que essas garantias fundamentais representam e a sua real necessidade, muitos não hesitam em proferir discursos movidos pela ignorância ao afirmar que tais direitos são regalias de bandidos. Precisamos, portanto, compreender o que fundamentou o surgimento desses direitos para então percebermos a sua vital relevância para as sociedades contemporâneas, o que nos inclui.
Historicamente os direitos humanos se originaram a partir de árduos processos de garantias que resguardassem os sujeitos e suas liberdades. Uma das primeiras liberdades a serem reivindicadas foi a liberdade de consciência, resultante do âmbito das disputas religiosas do século XVI. Quando Lutero reivindicou a livre interpretação das Escrituras Sagradas, ideias como liberdade de pensamento e expressão passaram a compor as preocupações de teólogos, intelectuais e homens de Estado, que no âmago da Contra-Reforma e nos séculos seguintes, não mais viam esses aspectos como irrelevantes, pois os conflitos religiosos tomavam proporções sangrentas na Europa entre os séculos XVI ao XVIII. O conceito de tolerância foi incorporado às discussões filosóficas entre os iluministas, aparecendo como um dos verbetes da Encyclopedie[1], cuja autoria foi do teólogo Romilly. Autores como Locke, Rousseau, Voltaire, dentre outros, elaboraram toda uma argumentação que a partir de justificativas de cunho político e moral sustentavam a tolerância no que tange à liberdade religiosa.
O que surgiu como uma discussão de verniz teológico, em períodos históricos posteriores deu o substrato necessário para uma racionalização e secularização do debate acerca das liberdades civis e direitos do homem e do cidadão. A ideia de tolerância enraizou-se nas concepções filosóficas que pressupunham a igualdade de direitos, liberdade política e de associação entre os homens. Esses princípios forneceram as bases para o aparecimento do Estado enquanto instituição garantidora desses valores, entendidos enquanto universais. Obviamente, essa universalização não incorporou a todos os membros da sociedade, muitos foram os setores sociais, a exemplo das mulheres e grupos étnicos minoritários, que foram alijados do acesso à universalização desses direitos. Entretanto, a observância desses princípios não excluía em sua matriz racional e filosófica tais grupos, mas sim os contextos históricos nos quais os mesmos se inseriam, tanto que as lutas políticas dos grupos alijados e a suas conquistas históricas visaram a obtenção desses direitos, que não pressupunham em sua formulação conceitual, tal excludência.
Percebe-se que a medida que esses direitos à igualdade e liberdade se expandiam, noções de tolerância e preservação da paz e justiça se consolidaram enquanto fundamentos do Estado e do Direito; nas palavras do professor Celso Lafer, a tradição ocidental consolidou historicamente a pessoa humana como valor-fonte do qual emanavam nossa experiência no âmbito ético e jurídico. Portanto, em seu percurso histórico, as sociedades ocidentais ampliaram gradualmente os mecanismos institucionais que possibilitaram uma universalização (ao menos no âmbito formal) e extensão de tais direitos, que posteriormente comporiam a base dos direitos humanos, com a sua Carta de Declaração, em 1948.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, não foi uma mera coincidência histórica. As experiências totalitárias do nazi-fascismo esfacelaram os preceitos modernos do Direito Natural e destituíram o ser humano do seu valor-fonte[2]. Uma importante contribuição para a concepção contemporânea dos direitos humanos nos foi legada pelo pensamento de Hannah Arendt. No entendimento da filósofa alemã houve uma ruptura no plano da reflexão jurídica que preconizava a razoabilidade, levando também o ser humano a perder o seu valor ontológico que legitimava a ordem social e jurídica. Para Arendt a sujeição do indivíduo à condição de descartável, sem lugar no mundo comum (o espaço político), ameaçado em sua existência, permitiu o surgimento do tudo possível.
Anteriormente à Declaração, os direitos dos homens e dos cidadãos[3] estavam circunscritos às esferas das soberanias nacionais, ou seja, o direito dos povos. Com o pós-guerra e toda a problemática referente aos apátridas e refugiados, com os consequentes genocídios perpetrados pelos regimes totalitários, a noção dos direitos dos povos ampliou-se para abarcar a todos os indivíduos, pois a compreensão de cidadania ligada a um Estado ou território tornou-se insuficiente. No entendimento de Arendt a cidadania passou a ser o direito a ter direitos, por uma compreensão de que a igualdade e a dignidade humanas são frutos da experiência coletiva dos homens, estão vinculadas ao seu pertencimento ao espaço comum entre eles, o que os tornam membros de uma comunidade política. Esse direito é inalienável e todo indivíduo goza dessa prerrogativa, não cabendo ao Estado ou nenhuma outra instância retirar-lhe essa condição. No momento em que essa condição inerente ao ser humano lhe fosse arrancada, a sociedade passaria a tratá-lo como coisa, um objeto destituído de existência no âmbito público e portanto descartável. Quando os indivíduos são postos em tal situação sobra-lhes o mecanismo impessoal dos campos de concentração e afins. O genocídio seria exatamente esse crime contra a humanidade, não apenas porque atinge um povo, etnia ou grupo religioso específico, mas porque atenta contra a pluralidade, quesito fundamental da existência humana.
Os direitos humanos passaram a preservar então todos esses valores que em conjunto determinam as bases de uma sociedade erigida sobre a igualdade política, liberdades individuais e nos princípios da paz e justiça. Muito antes de supostamente “defender bandidos”, os direitos humanos, na verdade, ajudaram a consolidar sociedades que repudiassem o extermínio de vidas humanas para servir aos propósitos escusos de Estados de exceção, para impedir que a “sagrada família e propriedade” do cidadão de bem fossem violadas por terceiros e justificadas em caso do mesmo estar em disputa com o poder central coercitivo. Claro que esse alcance da Declaração está mais presente na teoria, visto que não faltam lugares pelo mundo onde essas garantias inexistem.
A mesma pesquisa do IPSOS aponta para o fato de que 66% dos entrevistados acreditam que o Estado brasileiro que deveria garantir os direitos humanos da população não cumpre seu papel. Em muitos casos, são as mesmas pessoas que repudiam ou minimizam a importância dessas garantias fundamentais, por considerá-las regalias de criminosos, desejando que o Estado do qual demandam a preservação da dignidade humana, torne-se o Estado de Exceção para os grupos indesejados da sociedade, nesse caso, os bandidos. A mesma lógica seria aplicada para os inimigos do Estado, que a depender de quem esteja no poder, pode afetar diferentes grupos. A vítima de hoje, pode tornar-se o torturador de amanhã. A sociedade não pode nem deve operar segundo critérios maleáveis como esses e que desconstruam a dignidade do ser humano de acordo com quem esteja operando a máquina. Os perpetradores de crimes talvez façam distinção conveniente entre as suas vítimas, contudo as garantias aos indivíduos são impessoais e menos suscetíveis aos caprichos perversos dos donos do poder.
Os apologistas das atuações violentas, que se indignam quando surgem defensores de presos cuja dignidade é vilipendiada em cárceres insalubres, ou quando policiais que promovem execuções em zonas de tráfico são acusados pelos seus crimes, em geral querem um Estado que transforme indivíduos em objetos e os descartem sumariamente, sob uma ficção chamada Estado Democrático de Direito. Existem ainda os casos em que os direitos humanos são associados a uma ideologia específica, por conta da maior proeminência da atuação de grupos ou partidos de determinada matriz ideológica, o que faz com que esses direitos sejam atacados como bandeira da ideologia X ou Y. Essa é outra ideia equivocada que se prolifera em nossa sociedade. A trajetória histórica do surgimento e edificação dos direitos humanos perpassaram inúmeras correntes de ideias, desde as teses teológicas cristãs, às tradições de pensamento liberais e socialistas, portanto, nada mais inadequado do que afirmar que a defesa dos direitos humanos é coisa de esquerda ou direita. Essa é uma defesa antes de tudo, das sociedades que primam por valores de solidariedade entre os indivíduos, respeito às diferenças e à vida, além de representarem aspirações de qualquer pessoa que acredite na defesa da pluralidade e liberdade humanas.
Os direitos humanos não são um beneplácito de um Estado ou grupo específico, são a conclusão racional e necessária de que as sociedades humanas não podem ignorar a cidadania dos indivíduos como condição imprescindível para o verdadeiro desenvolvimento social. Portanto negá-los é reafirmar a ignorância e a estupidez. Ignorância se combate com informação. Estupidez se combate cotidianamente com a razão, instrumento necessário para escaparmos do ocaso da barbárie.
[1] Obra que reuniu publicações dos mais variados filósofos do Iluminismo, considerada a primeira enciclopédia publicada.
[2] Esse argumento foi apresentado por Celso Lafer em seu texto “A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt”.
[3] Observemos que a terminologia “homens” e “cidadãos” recorre a uma epistemologia característica da concepção moderna de tradição iluminista.
REFERÊNCIAS:
http://www.bbc.com/portuguese/brasil-44148576
LAFER, Celso. “A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt”. IN: Estudos Avançados 11 (30), 1997.
REIS, Helena Esser dos Reis. “Da tolerância ao reconhecimento: acerca da proteção aos direitos humanos”. IN: Quadranti – Rivista Internazionale de Filosofia Contemporânea, vol. III, n 1-2, 2015.