O diálogo é uma bandeira levantada pelas ciências humanas, uma das palavras mais usadas por aí, como se fosse algum tipo de virtude, um símbolo. Mesmo não tendo dinheiro, grandes terrenos ou carros importados, nós temos, supostamente, uma capacidade única de ouvir, de entender e analisar o mundo ao nosso redor, saindo assim da névoa de ignorância e rigidez que sufoca a maioria das pessoas. Ao menos é assim que contam a história, é esse o modo como justificam a existência das ciências humanas: Somos o poço da sabedoria, a referência do diálogo, aquele críterio que define uma boa linguagem. Será mesmo?
O problema é que o diálogo, muitas vezes, é usado apenas como um elemento retórico, uma estratégia de ataque ao outro, mas nunca como um princípio de vida, uma estrutura. O dialogo, ao contrário, não pode ser entendido apenas como uma palavra em um texto, ou discurso, um elemento qualquer dentro de um jogo de auto-preservação, mas sim como uma forma da linguagem, uma estrutura que sustenta toda a cadeia de argumentos. Ou seja, o dialogo não é algo a ser entendido, explicado, mas percebido, através da experiência de quem a articula, no modo mesmo com que as palavras são encadeadas, caso contrário, o termo fica vazio, sem sentido, sem vida.
Quando o diálogo deixa de ser apenas uma palavra, ou uma arma retórica, a linguagem passa por uma incrível transformação, deixando de ser um poço de certezas, uma simples correspondência com o mundo lá fora. Ela começa a se tornar um potencial estético, um cruzamento entre arte e ciência. O diálogo como estrutura de linguagem, e não como um mero conteúdo, faz das palavras um campo de articulações, um espaço em que o critério decisivo é a performance, a capacidade de encadeamento, ou seja, um rico campo de manobras, metáforas, hipérboles, justificações, etc.
O diálogo, enquanto palavra, enquanto um conteúdo, nada mais é do que uma ferramenta conveniente, um artifício usado por muitos, em uma atitude hipócrita e conservadora. O diálogo, ao contrário, tem vida própria, um universo próprio, não sendo uma extensão da minha vontade. Ao ser entendida como uma estrutura, muito mais do que um simples conteúdo, o diálogo deixa certas marcas espalhas por todo o canto, muitas delas desagradáveis. Existe sempre um risco de fundo, um risco que traz consigo a angústia, a instabilidade e a incerteza. Ao ser uma estrutura, o diálogo descentra minhas palavras, ao mesmo tempo que se abre para novos encontros, novas trajetórias. Nesse terreno, não carrego mais a pretensão de dizer o que o mundo é, ou o que as pessoas são, numa tentativa ingênua de marcar uma fronteira objetiva entre as coisas. No mundo real, concreto, não existem limites claros, ou mesmo um vetor de sentido linear e óbvio.
O devir deleuziano, ou a dialética hegeliana, são exemplos de palavras que não são propriamente palavras, mas estruturas de linguagem. Elas compõem não apenas o corpo do texto, sendo conceitos em uma página, mas também são uma estrutura de raciocínio, o modo como os argumentos são construídos. O diálogo, da mesma maneira, segue esse percurso profundo, indo além do que aparece, da superfície do que é dito, ao caminhar rumo a uma espaço verdadeiramente aberto, complexo, embora sem perder aquele senso de risco, de frustração.
Na prática, quando o dialogo é um mero conteúdo, um elemento dentro de um discurso, não existe propriamente diálogo, mas apenas um monólogo. O fato de existir um lugar com pessoas dentro, falando entre si, não indica ainda a presença do diálogo, a não ser que essa fala tenha a dialogia como estrutura, sendo a forma como as palavras são encadeadas e o racicionio estruturado. Eu não vejo um diálogo, eu não ouço um diálogo, eu percebo um diálogo, ou seja, ele é uma experiencia, é um modo de se posicionar, não importando o conteúdo em jogo. O diálogo não se encontra por trás da palavras, mas entre elas, como fios que conectam ideias e apresentam argumentos. O diálogo como estrutura, portanto, não tem nenhuma pretensão, não entende a linguagem como apenas um meio de transmitir objetividades, mas sim como um campo criativo, dinâmico, artístico.
Da mesma forma que um romance não é definido por algum critério de validade, o diálogo, ao menos quando bem aplicado, segue um rumo parecido, tendo como critério as associações, os encontros, assim como a própria energia que corta as palavras. O que existe por tràs dessas associações? pergunta o nostálgico positivista. Não existe nada além das associações, nada além da sua capacidade de gerar impacto, de transformar vidas e modificar corpos. O diálogo não é um campo de certezas, um pretexto para marcar terreno, uma fronteira, muito pelo contrário. Ele é um campo horizontal, apesar de todos os riscos envolvidos, apesar da incerteza escondida nas articulações de palavras.
Referência da Imagem:
https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/formacao-e-educacao/aprovada-a-resolucao-sobre-etica-em-pesquisa-nas-chs/17194/