Era uma vez um ecossistema sui generis, formado por um enorme lago profundo, cercado por árvores frondosas e abarrotadas de frutas. As margens do lago eram ricas em sua fauna e flora e ainda por cima haviam as frutas que costumeiramente caíam na água. Nas águas e nas árvores, dois espécimes se destacaram, respectivamente: a Lula e o Tucano, eram os únicos de sua espécie na região. Inconformados cada qual ao seu modo com a maneira que essas benesses se distribuíam, convenceram outras espécies de seu habitat a lutar pelas suas ideias.
Junto com um cardume de peixes-palhaços, a Lula convenceu carpas e piranhas a atacarem os pássaros quando estes mergulhavam ou estavam próximos à superfície; ela expelia uma tinta vermelha que deixava a água turva, confundindo os adversários (e por vezes os aliados!). Já o Tucano, ao lado do seu principal aliado, um enorme Pato amarelo, convenceu um bando de patinhos, urubus e gaviões a atacarem os peixes quando estes vinham à superfície, por acreditar que os cardumes vinham roubar as frutas que caíam das árvores e que eram dos pássaros por direito. A guerra perdurou, mas os líderes e seus asseclas se locupletavam das benesses do ecossistema, enquanto os bandos e cardumes estavam ocupados demais com o conflito.
A fábula aqui narrada é apenas uma brincadeira, mas assim como as demais fábulas ela consiste numa alegoria narrativa[1]. Se transpusermos suas metáforas para a realidade, ao menos nos serve para pensar algumas questões. O cenário político brasileiro contemporâneo com todas as suas idiossincrasias, simultaneamente insufla nossa imaginação para o cômico e recrudesce nosso olhar para a trágico.
A recente prisão do ex-presidente Lula, assim como todo o processo que levou a este fato, reavivou entre muitos brasileiros sentimentos antagônicos. De um lado, entusiastas da condenação e detratores empedernidos de Lula, que o odeiam com todas as forças e veem no ex-presidente a encarnação dos males que corroem o Brasil; do outro lado os defensores quase apostólicos do mesmo, que enxergam em sua figura o paladino da moral e dos bons ideais políticos, messias dos pobres, vítima de uma perseguição sistemática do Judiciário e das forças retrógradas do país. Ambos os diagnósticos estão não apenas distantes da verdade, como sequer se importam com ela. Para os setores políticos, empresariais, movimentos sociais e militâncias pouco parece importar uma avaliação mais fria e pragmática do que representaram seus respectivos ídolos.
Os segmentos que se identificam como “esquerda” ligados ao PT e aliados, e até mesmo grupos de ideias mais radicais cuja retórica condenava o Partido dos Trabalhadores ao ostracismo esquerdista, se uniram em torno dos gritos de “Lula Livre!” e “Eleição sem Lula é fraude!”. A Lava-Jato, Moro, o Judiciário, as elites, a classe média, a mídia golpista, ou qualquer outra entidade é evocada para representar a horda inimiga. Nesse ínterim esquizofrênico o que se perdeu foi a capacidade desses grupos de avaliarem a realidade socioeconômica e perceberem que não apenas de perseguições são feitos os fracassos e esquemas de corrupção na gestão da principal empresa pública do país, que políticas econômicas equivocadas podem levar ao desemprego, à inflação e que uma má condução da nossa economia cobrou seu preço, e foi a sucessora de Lula quem pagou a conta. Pedaladas fiscais foram relativizadas e negligenciadas em sua existência, os discursos de “não houve crime de responsabilidade” e “os governos anteriores também praticaram” revelaram a faceta de uma hipocrisia sintomática.
Por mais importante que tenha sido tirar milhões da fome, a ampliação do ensino superior ou expansão do consumo, assim como tantas outras mudanças verificáveis, o aparelhamento da máquina pública, a parceria entre setores do Estado com grandes empresas e enriquecimento de agentes privados com a sangria de recursos públicos não pode ser justificada; a culpa individual dos partícipes existe independente da qualidade ou não do seu governo.
O apego à figura de Lula e o fortalecimento do seu “mito” só evidenciam de maneira gritante algumas fraquezas das esquerdas brasileiras que orbitam ao seu redor: a carência de lideranças políticas que se destaquem pelo alinhamento a um conteúdo programático ideológico ao invés de se destacar pelo personalismo político. Além disso, a ausência de renovação dos seus quadros institucionais atrelada à incapacidade de reconhecer a própria responsabilidade no fracasso de sua gestão e sua consequente derrocada política, tornam a narrativa do golpe mais aceitável, afinal, sempre haverá uma mídia golpista sedenta de sangue esquerdista. O eminente sociólogo Raymond Aron observou que a esquerda, cuja origem estava na oposição das ideias, em sua denúncia de uma ordem social imperfeita (tal qual a realidade humana), ao tornar-se responsável pela gestão da sociedade demonstrava em seu modus operandi que era apenas uma outra forma de poder, ao invés de representar a liberdade contra o poder. No final das contas, o gérmen do insucesso da esquerda estaria em sua incapacidade de vislumbrar no horizonte da ação política as suas próprias limitações.
A cena política brasileira nos apresenta uma falsa dicotomia onde do lado oposto encontra-se uma “direita” reacionária. Essa visão está tão turva quanto as águas cheias de tinta vermelha da nossa fábula. De fato, em meio à multidão CBF conduzida pelos patos amarelos, não faltaram cânticos do que de pior a nossa sociedade reacionária nos reserva: desde os pedidos em nome da democracia pela intervenção militar na democracia (já vimos esse filme antes), ao surgimento de grupos supostamente apartidários como o MBL que apesar do verniz moderno, se tornou um palco para a proliferação de ideias rasas e incitação a um conservadorismo travestido de vanguarda da sociedade civil. Afinal do que o Brasil se libertou? O objetivo de se reduzir ao expurgo da esquerda do poder, logo revelou o quão espúrio foi esse clamor seletivo de alguns segmentos sociais. Muitos dos patinhos indignados das ruas, pouco fizeram nos anos de sangria dos cofres públicos pelos mesmos grupos que os apoiavam sob o manto da oposição moralizadora. O tucanato e seus correligionários por estarem fisiologicamente dependentes da máquina estatal viciada da qual ajudaram a construir jamais transgrediriam as barreiras necessárias a um movimento político renovador.
Em meio a essa ilusão polarizada de nossa sociedade o que se destaca é a incapacidade de um diálogo verdadeiramente republicano e democrático, pois não faltam desrespeitos às nossas instituições, seja por parte da população e seus representantes ou até mesmo de chefes das forças armadas com declarações inadequadas. Na República Tupiniquim a política se faz na base do descrédito dos poderes e na troca de favores entre os mesmos, ao invés da fiscalização. A política no Brasil se faz do Estado para o Estado. Lição que o PMDB aprendeu bem. O Estado brasileiro tornou-se um Leviatã que devora a “ideologia” dos partidos e grupos políticos quando estes operam no seu âmago.
Essa característica do Estado brasileiro foi constatada por Simon Schwartzman, ao afirmar que o sistema político no Brasil ao invés de atuar enquanto esfera de representação de interesses dos diversos agentes da sociedade, pelo contrário, possui uma dinâmica autônoma de cooptação dos mais diversos segmentos sociais, tornando o jogo político o campo de negociação entre aqueles que acessam ou não os benefícios controlados pelas mãos estatais. O Estado neopatrimonial brasileiro gestou os seus próprios agentes, uma burocracia com o manto de classe política, capaz de cooptar lideranças desde empresários e sindicalistas a intelectuais e líderes religiosos, um processo cada vez mais institucionalizado e corporativista, que viceja por todas as camadas da sociedade civil.[2] A cooptação do sistema político brasileiro teria uma dupla face: de um lado incorpora os segmentos sociais com as benesses do sistema, por outro lado exclui os setores não contemplados tanto dos processos de decisão política quanto da distribuição das riquezas sociais.
Retomando a alegoria da fábula, percebemos que enquanto os cardumes e bandos brigam entre si, seus líderes se locupletam. Mas lulas e tucanos são passageiros, o monstro perene desse lago metafórico chamado Brasil é o Leviatã que habita as profundezas e se alimenta de tudo e de todos, sejam eles pássaros ou peixes. O sistema de representação político brasileiro é a expressão desse Estado que enfraquece a sociedade civil e suplanta lentamente as instituições, transformando os três poderes da República numa mera ficção submetida ao crivo de um estamento burocrático estatal.
A fábula da lula e do tucano é apenas uma alegoria de mais um episódio da nossa vida política, porém, ao contrário dos contos tradicionais como “A cigarra e a formiga” não traz uma lição de moral para crianças, mas uma reflexão para adultos que sentem que alguma coisa está errada em nosso sistema representativo. No Brasil as fábulas são bastante populares e tivemos Monteiro Lobato como um ilustre difusor desse gênero literário. Ironicamente, não foi das mãos de um escritor que saiu a mais nova fábula brasileira. O cenário político tupiniquim fez surgir uma pitoresca narrativa que surpreenderia o próprio Esopo.
[1] O intuito de uma fábula era o de instruir, por meio de uma estória cuja conclusão consistia em algum ensinamento moral de cunho educativo. Via de regra, as fábulas se propunham ensinar às crianças valores sociais que edificassem o seu caráter e em geral os personagens eram animais.
[2] Simon Schwartzman caracteriza o estado brasileiro enquanto uma instância neopatrimonial. O neopatrimonialismo consiste numa apropriação de funções, órgãos e rendas públicas por setores privados continuamente subordinados a uma burocracia estatal chamada de “estamento burocrático”. Para uma definição mais pormenorizada, consultar o livro As bases do autoritarismo brasileiro, do mesmo autor.