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Foto do escritorEquipe Soteroprosa

O enigma chamado Rousseau



Imaginemos uma cena: um homem de meia idade, distribuindo folhetos feitos por ele mesmo aos transeuntes e sendo ignorado, vagando pelas ruas com um manuscrito de sua autoria em mãos, afirmando que aquele documento continha o seu protesto contra os seus perseguidores intelectuais, desesperado por não haver quem publicasse tal documento após sua morte; tudo isso após fracassar na tentativa de afixar o manuscrito no altar da principal catedral da cidade. Essa cena pitoresca certamente nos faria imaginar algumas dessas icônicas figuras (e talvez loucas) do nosso cotidiano urbano, mas não um filósofo e escritor renomado, homem das letras, frequentador de importantes círculos intelectuais da alta sociedade, cujas ideias influenciaram toda uma época. Para nossa surpresa, esta cena se refere ao final da vida do filósofo genebrino Jean Jacques Rousseau.[1]


Dentre os pensadores do Iluminismo, poucos indivíduos foram tão influentes e controversos quanto Rousseau. Homem de paixões e ideais, cujo pensamento foi movido por um sentimento moral ligado às virtudes cívicas, possuía um espírito agitado e inconformado, o que o levou a embates e desavenças com os demais philosophes das Luzes, discordava principalmente da visão positiva que estes tinham acerca do progresso e dos seus benefícios para a sociedade. Considerado um dos precursores da concepção da evolução social, tido por muitos como um visionário enaltecedor do indivíduo e de uma sociedade livre, por outros como um antecessor de ideias coletivistas de verniz autoritário, definitivamente não há um consenso sobre Rousseau. O que é inegável e consensual diz respeito à influência das suas ideias na vida cultural e política de fins de século XVIII, mas que não se limitaram ao passado.


A teoria política de Rousseau nos legou importantes reflexões que nos auxiliam a pensar sobre questões pertinentes à constituição da democracia moderna, direitos individuais, liberdade política, soberania do povo, dentre outros aspectos relevantes para a nossa sociedade contemporânea. A sua obra mais conhecida e importante é O Contrato Social, na qual ele estabeleceu as principais linhas do seu pensamento político. Façamos uma breve incursão pela filosofia política do Cidadão de Genebra e tentemos compreender um pouco mais do seu pensamento, que despertou tantas opiniões divergentes.


A compreensão de política para Rousseau está permeada pela sua percepção sobre a liberdade. Para o genebrino a liberdade se distingue conceitualmente em dois tipos: a liberdade natural e a liberdade civil. O primeiro tipo representaria o estágio do homem em seu estado natural, dono de sua própria potência inata e submetido a ninguém que não a si próprio. A liberdade natural fora perdida gradualmente com o avanço inexorável da civilização, não se poderia reavê-la, contudo, era possível estabelecer um novo terreno para que esse elemento fundamental da essência humana[2] pudesse exprimir-se em toda a sua plenitude. O segundo tipo, a liberdade civil, era o resultado do pacto social, representava a formação de um novo homem, dotado da virtude e dos sentimentos cívicos, o indivíduo dava lugar ao cidadão e nesse processo, a liberdade, dantes compreendida e experimentada no âmbito particular, tornava-se assim convencionada e exercida no interior da vida em comunidade. Da propriedade privada à formação do Estado, o desenvolvimento da sociedade só retirou cada vez mais o ser humano do seu status de liberdade, condenou-o a submissão de outrem. Por essa razão, o filósofo genebrino apontou para um caminho de sociedade que resgatasse a liberdade humana, transfigurada para uma liberdade civil.


O que possibilitaria essa mudança de pessoas dispersas para um corpo político organizado? A resposta de Rousseau: o contrato social. Seria este o elemento fundador da sociedade civil, o marco fundante do direito, pois em seu entendimento a força não produz direito, porque em sua gênese ela substitui o efeito pela causa, a obediência resulta numa submissão pela necessidade e não pela vontade. O contrato social seria o modo pelo qual os homens encontrariam uma forma de mediação uns com os outros, estabeleceria as bases para que pudessem dar consecução a uma vida em sociedade. Como foi dito anteriormente, o genebrino colocava a liberdade como traço essencial para qualquer sociedade, o motivo pelo qual os indivíduos deveriam se organizar para gerar um bem comum. Como preservar tal característica? Os homens não poderiam renunciar à sua liberdade, condição distintiva da sua humanidade e fonte dos seus direitos e deveres, portanto, já percebemos uma oposição à concepção de filósofos como Thomas Hobbes, em que o pacto social fundou-se numa renúncia da liberdade em prol de um Estado que se colocasse acima das pessoas.


Para Rousseau, o Estado representaria a conformação dos indivíduos a um corpo político definido em torno de uma ideia: realizar o bem comum. Os homens, apesar das suas vontades particulares, unificavam-se enquanto povo, e passavam a se chamar cidadãos. Observamos nesse movimento uma mudança fundamental: do indivíduo ensimesmado em seus interesses privados, vemo-lo transformar-se em parte da comunidade, por meio de um contrato social do qual o mesmo participou da elaboração como membro ativo do corpo político, seus interesses se tornaram componentes do interesse geral, não enquanto um fragmento que se soma ao todo, mas enquanto parte essencial da totalidade. Portanto, em Rousseau a essência do Estado é o pacto social no qual os homens entregam a sua liberdade no estado da natureza para avançar enquanto parte de um povo, e é dele que emana a verdadeira fonte de todo o poder e autoridade, pois cada um individualmente destituiu-se da sua liberdade originária para transformá-la em uma liberdade realizável no âmbito coletivo; a expressão máxima desse poder seria a vontade geral.


Esse é um conceito fundamental de Rousseau e propenso a muitos questionamentos, mas em suma, o que seria essa vontade geral? Resumidamente, ela representaria a totalidade do corpo político e social, reuniria os interesses individuais no que eles apresentam enquanto elemento comum entre os cidadãos, todos se veriam contemplados por tal vontade porque ela seria elo fundamental entre as consciências dos cidadãos. A vontade geral é a expressão da liberdade dentro da sociedade política. Rousseau acreditava que a força dos sentimentos cívicos conduziria os homens, outrora corrompidos pela sociedade e “postos a ferros”[3], à uma reparação moral. Por isso, a vontade geral não pode ser entendida sem observarmos esses princípios morais que justificariam a participação dos cidadãos na vida política, não pelo mero fato de que parte de seus interesses estavam ali corporificados, mas porque foram educados civicamente para participar dela e viam-se contemplados pelas decisões tomadas por serem integrante do corpo político.


O Estado na teoria política rousseauniana é a manifestação da vontade geral, o que já nos coloca diante da constatação de que para fazer parte do Estado o indivíduo precisou abdicar dos seus interesses particulares para integrar o poder da vontade geral. Ao expor tal argumento, sem dificuldade questionamos em que medida essa participação política não se opõe a liberdade supostamente conquistada ao integrar o corpo social. Alguns viram nas proposições do genebrino contradições ou paradoxos, devido aos imbróglios dessa natureza. Poderia essa concepção de Estado dar substrato às visões autoritárias de sociedade, nas quais essa renúncia dos sujeitos cada vez mais os colocassem sob o jugo de uma maioria? O questionamento tem pertinência. Todavia, percebe-se na teoria de Rousseau uma preocupação em reiterar que a vontade geral não poderia em essência opor-se aos indivíduos, porque os mesmos estariam contemplados nela, mesmo que de forma parcial, e em última instância, um indivíduo que agisse contra a vontade geral estaria agindo contra si próprio.


A manifestação da vontade geral suplantaria as vontades particulares e advogaria pelo interesse comum. Tal exercício do poder político só seria possível por meio do Soberano, que seria o povo. Aqui se torna mais evidente a noção de democracia de Rousseau. O Soberano é o povo corporificado na forma de assembleia, reunido para deliberar sobre as leis que regem uma nação. Cada cidadão participante da Assembleia do povo teria o mesmo nível de poder decisório e seria igual aos demais, participaria nas deliberações acerca da vida em sociedade e criação das leis diretamente, sem o intermédio de representantes, a vontade é intransferível e a soberania somente se preservaria nesses termos. Enquanto membros do Soberano, da mesma forma como acontece com a Vontade Geral, os indivíduos não podem agir contra a assembleia sem atentar contra si próprios, e sendo a vontade uma característica pessoal e intransferível, os cidadãos não podem delegar para nenhuma outra instância ou pessoas o seu direito de exercer a política.


O poder emana do Soberano e somente ele pode impelir o movimento necessário à sociedade, cabendo ao Governo, apenas executar tais atribuições. Na teoria política de Rousseau, Soberano e Governo acabem por estabelecer uma relação de polaridade oposta vista da seguinte forma: quanto maior a força do Soberano, menor a força do Governo, o inverso também é verdadeiro. Essa correlação se justificaria pelo fato de que o Governo ao representar a execução das leis oriundas do contrato social, seria uma força externa à Assembleia, composta de funcionários e representantes do povo, logo, a representação, por ser uma usurpação da vontade intrasferível dos sujeitos, já corporificava uma oposição à soberania.


Em seu idealismo Rousseau claramente enxergou possibilidade de restaurar a democracia verdadeira, por meio da atuação direta dos cidadãos na vida política. A vontade geral manifesta pelo Soberano seria reta e infalível, contudo, o povo não estaria imune ao erro, portanto estaria sujeito ao engano, não por corrupção da vontade geral, mas pela má condução do corpo político. Nesse contexto específico, para resguardar a integridade do Estado e da Soberania, é que aparece na teoria rousseauniana a figura do Legislador. Essa figura, crucial para o entendimento da formulação das leis e consolidação do pacto social, constitui um dos pontos mais interessantes e talvez mais problemáticos do Contrato Social.


O ato de legislar é a expressão direta da vontade do Soberano; pensar as leis e redigi-las seria parte de um mesmo movimento da sociedade com vistas à manutenção do contrato social. Legislar só poderia ser feito em causa própria, pois o povo só manifestaria sua vontade em prol do interesse geral, porém, se a vontade geral não poderia incorrer em desvios, o mesmo não poderia ser dito do povo, porque o mesmo estaria sujeito às dissensões e Rousseau mostrara-se inclinado a acreditar nisso. Seria possível conciliar o ato de legislar com a liberdade? Delegar o poder de legislar a outrem acarretaria na perda da soberania e consequentemente na degradação do corpo político, pois fortaleceria o governo e diminuiria o poder dos indivíduos. Mas, se os homens não estavam imunes às suas paixões e vontades particulares, como, no ato de legislar, poderiam libertar-se dos seus sentimentos avessos à cidadania?


O Legislador seria um homem extraordinário no Estado, alguém capaz de compreender as paixões humanas e sua natureza sem deixar-se levar por elas, seria o responsável por guiar os homens, sem coagi-los, mas educando-os a prosseguir com retidão e buscar o caminho da cidadania sempre. O legislador teria como função a promoção do espírito cívico em prol da coisa pública, jamais exercendo o poder, pois essa atribuição pertencia ao povo e somente a ele.


De forma paradoxal, o legislador encontra-se imerso na sociedade, mas enquanto ser, a parte dela, visto que, apenas numa situação de exterioridade seria possível contemplar toda a obra humana. O legislador não poderia representar os homens, dada a implicação da representatividade, contudo estaria responsável por concatenar os múltiplos interesses postos em jogo, não como um mero conciliador porque isso o reduziria ao papel de articulador de interesses particulares, o legislador estaria acima disso, ele seria o guia. Não estaria nas mãos do legislador criar as leis, essa função pertence ao Soberano, mas redigi-las, Rousseau deixa claro que aquele que redige as leis não pode ser o mesmo que as elabora.


A percepção rousseauniana compreende o legislador enquanto aquele que racionaliza a vontade geral em forma de lei, intermediando a relação entre o povo e o governo; a educação para as virtudes deveria se instaurar numa sociedade de modo a evitar que a mesma arraigasse os preconceitos, pois estes seriam deletérios à formação de um corpo jurídico saudável. O que orienta o papel do legislador deve ser sempre a busca do interesse geral com o intuito de preservar a liberdade, tão preciosa aos homens. Quanto mais esclarecido e elevado espiritualmente for o Legislador, mais virtuosos serão os seus cidadãos. Nesse ínterim, caberia àquele que legisla observar as proporções adequadas entre o exercício da soberania e a força do governo que executa as leis.


Percebe-se então que o legislador concentra em torno de si uma inegável responsabilidade acerca da preservação da liberdade e da coesão social. É pertinente se indagar como seria possível encontrar tal homem na sociedade, visto que a mesma, dado o seu processo de “evolução natural”, corrompera-se. Isso nos conduz a uma problemática quanto à formulação do conceito do Legislador: seria essa figura uma pessoa, dotada das mesmas limitações humanas, ou seria uma personificação de valores virtuosos, ou seja, uma imanência do corpo político? Um dos problemas de se pensar no Legislador enquanto imanência, uma entidade metafísica em essência, seria arcar com a questão tortuosa de como uma entidade não-humana, dotada de uma natureza humana poderia conectar-se aos assuntos dos homens sem transparecer uma aura divina. Por outro lado, ao reconhecer que o legislador, por mais extraordinário que seja enquanto homem, ainda estaria dotado dessa mesma natureza, senão chegaríamos a uma tautologia que justificaria o extra-humano não divino. O Legislador seria um homem feito da mais pura Razão. Porém, podemos fazer o seguinte questionamento: o Legislador incorreria no risco de tornar-se um tirano?


O legislador por definição orienta e não exerce poder, o tirano usurpa a soberania e opera de modo a coagir[4]. Como se daria essa mudança do poder, das mãos do soberano para o tirano? Quanto maior for o poder do governo em relação ao corpo político e maior o for o poder de ação da sociedade sobre o indivíduo e não o contrário. A partir do momento que o poder executivo suplanta o legislativo a sociedade caminha para o fortalecimento do papel do tirano e o legislador desaparece; uma das justificativas para esse domínio estaria na raiz do povo em questão, quando este não se encontra apto para a legislação, ou seja, para o virtuosismo cívico. Esse argumento torna ainda mais paradoxal o entendimento do papel do legislador, contudo essa figura opera como um guia, os homens ao acessar a razão não necessariamente operam segundo seus princípios, ou seja, o preço da liberdade estaria na possibilidade inclusive de desvirtuamento. Somente numa atuação conjunta entre o Legislador e o Soberano, a sociedade poderia romper o círculo vicioso da corrupção que grassava pelo corpo político


Rousseau compreende que a sociedade é movimento, portanto, mesmo a tirania pode ser combatida dentro do próprio corpo político, através da participação direta dos homens nos assuntos do Estado. Essa é uma lição valiosa que o genebrino nos legou: a liberdade só será preservada enquanto os indivíduos tomarem parte nos assuntos políticos, inclinados pelo sentimento de cidadania! O risco de se cair numa tirania sempre existirá, daí o papel ativo do cidadão de resguardar o corpo social por meio da sua atuação direta.


O Cidadão de Genebra definitivamente tinha um espírito agitado e não aceitou as verdades da sua época, o que o levou a muitas dissensões intelectuais. Essa mesma personalidade também o conduziu por uma investigação filosófica que desconstruiu qualquer ideia que isentasse o indivíduo do seu protagonismo na busca pela liberdade. Rousseau foi um homem de paixões e sua filosofia foi movida por um sentimento moral ligado às virtudes cívicas, tal postura por vezes pode tê-lo conduzido à diversos imbróglios teóricos e por vezes tenham atraído sobre ele severas críticas, claro, nem todas injustificadas. Apesar de tudo, o pensamento do filósofo genebrino possui um vigor intelectual que continua merecendo a nossa apreciação. Quanto mais buscamos desvendar o “enigma Rousseau” mais percebemos o quão instigante ele é, não pelas supostas respostas que ele nos oferece, mas pelas inquietações que desperta em nossas consciências.




[1] Essa descrição está presente no texto de Bertrand de Jouvenel, “A teoria de Rousseau sobre as formas de governo”.

[2] Rousseau compreende a liberdade como um traço essencial da humanidade.

[3] Expressão que Rousseau utilizou na abertura do Contrato Social, Livro I, capítulo I: “o homem nasceu livre e em toda parte é posto a ferros”.

[4] Essa breve e eloquente definição encontra-se no texto de Adriano Eurípedes Medeiros Martins, “Legislador e tirano, como distingui-los? Uma reflexão sob a perspectiva de Jean Jacques Rousseau”.


Referências:


CASSIRER, Ernst. A questão Jean Jacques Rousseau. São Paulo: UNESP, 1999.


JOUVENEL, Bertrand de. A teoria de Rousseau sobre as formas de governo. IN: QUIRINO, Célia; SADEK, Maria Tereza. “O pensamento político clássico”. São Paulo: Martins Fontes, 2003.


MARTINS, Adriano Eurípedes Medeiros. Legislador e tirano, como distingui-los? Uma reflexão sob a perspectiva de Jean Jacques Rousseau. IN: Sapere Aude. Belo Horizonte, v.6, nº 12, 2015.


ZIMMERMANN JR, Giovani Luiz. A vontade geral e o papel do legislador em Rousseau. IN: Revista Alamedas, vol.4, nº 2, 2016.

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