Foto do tiro que atingiu um dos ônibus da caravana. (Foto: PT/Divulgação)
No dia 27 do mês passado, dois ônibus da caravana de Lula foram alvejados por disparos de arma de fogo, enquanto passam pela rodovia estadual PR-473, trecho que liga as cidades de Quedas do Iguaçu e Laranjeiras do Sul. De acordo com as informações, o ex-presidente não estaria neles no primeiro momento, versão corrigida posteriormente.
A despeito da gravidade do fato, confesso ter lido as primeiras notícias com certo desinteresse, não por achar que o ocorrido não seja grave, mas porque o fiz com as lentes de um ceticismo kafkiano, que já não se ilude com a capacidade da espécie humana. Ficou a impressão de que o atentado era um epílogo de uma espécie de ensaio geral, que já havia iniciado com as palavras hostis, ovos e pedras, manifestações de descontentamento que passam ao largo da crítica civilizada.
Não pretendo aqui revogar o direito à liberdade de expressão, direito assegurado das democracias atuais e que custou o sangue de tanta gente. O que não pode ser tolerável é que esse clima beligerante continue a se espalhar na política, como um câncer agressivo que avança sobre o corpo e parece não reconhecer tratamento eficaz até o momento. Esses conflitos por causa da competição política ocorrem desde o acirramento da disputa pelo controle do Estado encabeçadas pelo PSDB e o PT, com claramente desvantagem do primeiro em relação ao segundo. Essa disputa ficou mais encarniçada em 2014, ano que os dois partidos apostaram na polarização axiológica, replicada nas redes sociais e também nas ruas.
No entanto, as manifestações de hostilidade parecem não se ater mais ao calendário eleitoral e se manifestam desde prisões dos nossos “bandidos favoritos” até o simples almoço em família, ou até uma viagem de avião. Se os gritos de “petralha” e “coxinha” parecem decepcionantes do ponto de vista cognitivo – e por si só já beira a estreiteza intelectual–, atirar com um ônibus parece jogar o país num passado que sequer nos pertence. Não à toa, fala-se em uma “colombianização” da política no país, fazendo menção a um passado recente de nosso vizinho latino, onde a competição entre as elites políticas era resolvida pela na “tora”, como se diz na Bahia. A referência à Colômbia é interessante, então nos atenhamos a ela.
De forma bastante resumida, a história política colombiana é marcada por conflitos entre os grupos políticos que, tendo em vista o controle do Estado, empregavam o uso da violência para reprimir duramente a oposição, onde até nos anos 50, essa disputa se encontrava basicamente no entre o partido Conservador e o Liberal e posteriormente contra os grupos de esquerda¹. Aliás, foi a impossibilidade de incorporação de grupos insatisfeitos dentro do jogo político que levou à repressão brutal ocorrida em 64 na região de Marquetália e originou as Farc. Talvez o episódio mais marcante talvez tenha sido o assassinato de Jorge Eliécer Gaitán ,fato que mergulhou a Colômbia em um período de quase anomia social, no que ficou conhecido como A violência.
Ainda que o assassinato da vereadora do PSOL-RJ Marielle Franco e o atentado recente contra os ônibus de Lula possam indicar uma radicalização da luta política, acho que comparar a história recente colombiana com a nossa vida política atual requer cautela. Em primeiro lugar (e até onde sei), os atos não tem como mandantes grupos representados pelos grandes partidos. Embora algumas reações lamentáveis de lideranças do PSDB, PMDB e também do PT, os principais partidos políticos se mostram contrários à violência como instrumento da política. Em segundo lugar, essa radicalização não se restringe à competição eleitoral como se viu na Colômbia, mas se manifesta de maneira mais abrangente, incluindo até ex-ministros e juízes do STF.
O que ocorre no país extrapola, embora não na consequência prática, o paradigma colombiano. Em comum, os dois casos demonstram a incapacidade das instituições de serem pontos de mediação dos conflitos da sociedade. Lá, o sistema político entrincheirado pelas elites dominantes não deu espaço para as demandas populares. Já aqui, há essa sensação de que as instituições políticas são “lenientes com a impunidade”. Sobre esse aspecto, vamos acender uma vela e render graças à Igreja da Lava Jato e os seus fiéis, que contribuíram para jogar na lama as instituições da república, não sem a “mãozinha” da própria classe política.
Particularmente (observando estritamente o aspecto intencional), não vejo muita diferença de quem desejou que uma bactéria tivesse matado o presidente Temer, da intenção de quem resolveu alvejar os ônibus com três tiros. Afinal, o desejo de ter eliminado o seu desafeto político não parece estar presente em ambos? Me desculpem os que animaram as redes sociais com memes, mas ninguém é ingênuo a ponto de achar que era “apenas uma brincadeira”, quando se torcia “força bactéria”.
Me parece que a violência protagonizada pelos grupos polarizados, ainda que tenham suas preferências político-partidárias, não encontram uma homologia no plano institucional. Esse espírito belicoso, ainda que animado pelos agentes políticos como forma de manter o seu nicho do eleitorado “ativo”, é mais retórico do que factual. Com efeito, os partidos políticos não precisam estar à frente para que os atos de hostilidade ao pensamento contrário aconteçam. Quem aqui não lembra da confusão que foi exibir o filme de Olavo de Carvalho em algumas universidades?
A incapacidade de conviver com aquilo que nós rejeitamos e encaramos como errado está tornando o ambiente público sectário, onde a multiplicidade de visões não está enriquecendo os pontos de vista existentes, mas sim criando “guetos” de opinião, onde no limite, quem pensa contrário não tem sequer o direito de se manifestar. Gosto muito do termo “hegemonia inclusiva”, criado por Robert Dahl em seu livro Poliarquia (que também recomendo a leitura, ao menos o primeiro capítulo), para designar regimes onde a participação existe, mas a oposição não é tolerada.
Parece que vivemos em um ambiente onde existem “guetos” axiológicos, que podem até estar dispostos a ter novos adeptos, mas que recebem em chave negativa qualquer pensamento contrário aos seus dogmas, muitas vezes tidos como verdade absoluta. Sem entrar no mérito da divisão ultrapassada entre esquerda e direita, mas se você é de um lado, então o outro não presta. Lembro que quando ainda usuário do Facebook, o grande debate era para saber se o nazismo era de esquerda ou de direita. Com a devida vênia, é coisa de se lamentar. Junte-se isso a um ambiente de perda da autoridade, então fica fácil entender como atirar em caravanas pode se tornar possível.
O grande Nicolau Maquiavel nos legou o axioma de que a história serve como referência. Se o assassinato de Gaitán desencadeou uma onda de violência em toda a sociedade e que forçou as elites políticas a forjarem um (controverso) pacto pela restauração da ordem e fim dos conflitos, todo o cuidado é pouco para que a nossa política, que agora aparece de maneira contumaz na página policial dos jornais, também não seja fonte para o preenchimento do obituário e não tenhamos o nosso próprio candidato morto. Para sair do chiqueiro de intolerância que nos metemos, não é eliminando quem pensa diferente que nos deixará mais limpos.
Nossa vida democrática foi tortuosa o suficiente. Não vamos vestir um figurino que não nos cabe mais.
¹Para quem quiser saber mais sobre o assunto, indico o livro da historiadora Ana Carolina Ramos chamado A Frente Nacional na Colômbia [1958-1974] A ditatura democrática das classes dominantes.