A coluna de hoje pretende incitar reflexões acerca da medida extrema promovida pelo governo federal, a saber, a intervenção do Exército no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018, com a intenção de manter a ordem pública. Não pretendemos discorrer sobre as questões jurídicas envolvidas no decreto de intervenção, se é ou não inconstitucional. O ensaio discorre mais no campo das dimensões históricas, políticas e sociológicas.
Um questão inicial: existem vários encontros nacionais, municipais, estaduais e internacionais sobre segurança pública; pesquisadores renomados que estudam anos a fio sobre a temática? Sim, existem! Por que os governantes não reúnem pessoas capacitadas para criar, em conjunto, um grande plano de Segurança Pública? Por que é tão difícil fazer isto? Qual o empecilho real em consultar especialistas e a sociedade civil para construir uma solução articulada? Por exemplo, o país têm várias Universidades públicas, pagas com dinheiro público, que investem em pesquisas, e de nada adianta! Os acadêmicos ficam reclusos no produtivismo insano, causado por sua própria lógica interna, sem que seus trabalhos tenham alguma relevância para uma intervenção na sociedade. As instituições políticas dão as costas! Existe um fosso entre Estado e sociedade.
A lógica do protagonismo e ascendência do Estado brasileiro ante a sociedade é de longa data na história do país. A Nação foi fundada no início do século XIX, pela chegada da Coroa Portuguesa, em fuga das investidas francesas. O que havia aqui era um povo sem forma, sem nenhum tipo de engajamento comum; uma colônia formada por diversos atores com interesses privados; maioria do povo submetida a humilhação da escravidão, longe de qualquer mentalidade cidadã e nacionalista.
A sobreposição do Estado sobre a sociedade começa com o Império Português, passando pela Monarquia, por uma República que tutelava o povo, uma Ditadura que retirou direitos políticos e civis, chegando à nova Democracia. Este período atual, passa principalmente pelos governos de Collor, FHC, Lula, Dilma e recentemente,Temer. Mesmo o PT não conseguiu criar uma sociedade efervescente, autônoma, independente para divergir e se colocar de frente com partidos políticos e o Estado; a lógica nesse caso foi a incorporação e cooptação de vários setores sociais às benesses estatais, mesmo reconhecendo a enorme ampliação dos direitos sociais, maior legado do governo petista. Contrariamente, alguns autores, como Leonardo Avritzer, defendem que muitos movimentos e associações, no período democrático, vivem uma interpendência com estados e partidos, e não subordinados a estes.
Outro grande problema do Brasil, é que a grande massa da sociedade, a que chamaremos aqui de ralé, é desprovida de capacidade de organização, construção de projetos comuns, e por uma compreensão mais elevada de cidadania. Para esta classe mais paupérrima, falta compreender que a Democracia não se resume a deveres, mas que há direitos resguardados a todos; a mentalidade de grande parte da população brasileira é ainda de súditos e não de cidadãos! A Democracia também não pode ser confundida com o restrito direito de consumo. E eis uma constatação muito factual: a diferença entre o indivíduo consumidor e uma postura civil, é muito tênue no Brasil!!!
Com a passividade da maioria da sociedade frente a sua própria realidade, e com grupos da sociedade civil organizados, com interesses completamente diversos e divergentes, que não se entendem, que não possuem uma linguagem comum - no sentido de buscar objetivos unívocos para o desenvolvimento do país - ficamos todos atados a uma Democracia elitista, que exclui a sociedade da participação política.
Um parêntese: quando é pra dialogar com a elite econômica é uma maravilha: isenções, perdões de dividas, concessões. Não condenamos de todo. O problema é a desproporcionalidade de diálogo dos governos com outros setores da sociedade.
A chamada Democracia participativa, que nada mais é do que o alargamento social, inclusão e democratização da sociedade, para influenciar, ajudar e levar projetos para a esfera política institucional, se apresenta como inócua, em um país no qual a cultura de estar no poder é reflexo de uma imagem distorcida e anacrônica de superioridade e nobreza. O eterno canto das sereias que seduz e hipnotiza!
Vivemos uma maldição do destino! Leitor, parece até que forças ocultas impedem a construção de uma cidadania mais plena na Era democrática; uma falta de consciência de que todos somos iguais perante a lei, independente de origem, cor, religião, etnia, raça, condição financeira, sexo e gênero. São preceitos modernos, instituídos na Carta de Direitos Humanos, nas Convenções internacionais e na maioria das Constituições ocidentais. Contudo, somos agarrados ao nosso passado, e sofremos um eterno castigo, como no mito de Sísifo: empurramos a nossa pedra até o topo da montanha, achando, ingenuamente, que estamos perto do desenvolvimento dos valores humanísticos e democráticos, chegando as alturas do monte, e nos decepcionamos com a rocha rolando novamente para o ponto de partida. Um movimento eterno!
Avancemos mais um degrau. Qual a experiência do Exército Brasileiro para lidar com cidadãos comuns - através da intervenção - em uma Democracia? Até onde sabemos, a única experiência brasileira é o caso do Haiti, mesmo assim em circunstâncias muito diferentes. Que sabe o governador sobre essas coisas? Um simples economista e administrador de empresas? Qual a intenção do Presidente da República a agir de tal forma? Uma tentativa de diminuir o desgaste do seu governo, refletido pelos elevados índices de impopularidade? Por que sempre nos submetemos as essas imposições políticas, que, em geral, excluem as vozes da sociedade?
Até onde sabemos, Rio de Janeiro nem aparece entre as cidades mais violentas do país, muito menos o estado carioca. A maioria das cidades violentas ficam no nordeste do país. Inclusive, duas destas cidades ficam na região metropolitana de Salvador, a saber, Simões Filho e Lauro de Freitas. Ainda: o Estado do Rio está na décima posição em índices de criminalidade.
Para chegarmos a tal ponto de excepcionalidade, em uma Democracia, é porque tudo vai muito errado. E a nossa defesa aqui, é de que a falta de articulação entre Estado e setores da sociedade – uma desaliança secular– impulsionou a calamidade pública que se encontra no Rio de Janeiro e diversos estados do Brasil, acometidos pela violência generalizada - alguns chamam de guerra civil não declarada - com enorme peso do crime organizado. E a saída mais imediata, mais simples – emergencial – e mais específica é a intervenção do Exército na vida urbana. Ainda mais grave: anuência do governador a quaisquer posicionamentos do general Walter Souza Braga Netto. Na prática, todas as polícias do Estado serão subordinadas às forças federais.
Quais impactos o decreto de intervenção? Será que criminosos ligados ao tráfico e ao crime organizado serão banidos do Rio? Para onde? Haverá inocentes com suas vidas ceifadas? Será que tal atitude do Presidente da República abrirá brechas para novas situações desse quilate, ou seja, intervenção em outros Estados? Tudo isto é só a ponta do iceberg.
Devemos repensar nosso modelo de gestão de recursos públicos municipais, estaduais e federais no que diz respeito não só a segurança, mas outros setores importantes, como políticas sociais de educação, arte e cultura; restruturação da polícia como um todo, inclusive combatendo a corrupção na própria corporação; melhor gestão do sistema prisional brasileiro; valorização das instituições sociais, como as ONGs e diversas associações; política fiscal eficiente, e uma política nacional de fronteiras articuladas com países vizinhos. É necessário um conjunto de ações articuladas! Os fatores para a anomalia social das cidades são múltiplas, e não se restringem a medidas imediatistas com simples uso da espada! Não é só a política de segurança! Precisamos do reforço e apoio de vários setores da sociedade, no sentido de combater as causas que incidem nos elevados índices de violência.
Leitor, aguardemos os próximos episódios, isso, claro, se o Congresso aprovar a medida presidencial. Apesar de tudo, das observações realizadas, não podemos profetizar o futuro, porém é muito improvável que só a política de segurança imediatista, que em nossa realidade, lembremos, é de confronto aberto desorganizado, inarticulado, sem um plano adequado de inteligência, dê conta de resolver o problema da criminalidade no país. Pode até se agravar.
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