O ressentimento não é apenas um detalhe, uma emoção, um desvio, um instante qualquer. Assim como imaginava Nietzsche, o ressentimento é um líquido estranho, uma substância que escorre do corpo até a linguagem, contaminando não apenas palavras, e seus significados, mas a própria forma como o raciocínio se estrutura. A genealogia, enquanto ferramenta retórica, pode ser um modo de contornar o problema, um tipo de estratégia diferenciada. Esse é o nosso objetivo de hoje, nesse ensaio, entender não apenas a presença de um corpo ressentido na linguagem científica, mas principalmente sugerir a genealogia como uma forma de resistência, um percurso alternativo no interior daquilo que chamam de “pensamento crítico”.
A linguagem do sociólogo mais tradicional, aquela pretensiosa, tende a se apresentar como um grande retrato cartesiano, auto-transparente, puro, asséptico, mas isso é apenas aparência, superfície, máscara. Existe um rio subterrâneo que atravessa seus encadeamentos, um fluxo material, um corpo. Para além dos critérios de validade, dos silogismos, das infinitas camadas de teoria, algo transborda nesse cenário, determinando muitas vezes o que chamam de estrutura epistemológica. Pode parecer estranho que uma coisa tão abstrata, filosófica, gire em torno não de uma mente esclarecida, com suas sínteses e análises, mas apenas de um pacote de experiências. Se esse pacote for agradável, por alguma razão, temos aí um olhar otimista, uma aposta nos “encontros”, “diálogos” e “trocas” presentes na vida cotidiana. Nesse cenário mais colorido, sujeito e objeto não travam uma luta entre si, mas entram numa dança quase harmônica, despencando numa zona indiferenciada onde fronteiras não são bem-vindas. A fenomenologia é um bom exemplo desse otimismo epistemológico, digamos assim. Não é por acaso que conceitos mais pesados, como violência, poder, dominação, etc, simplesmente não façam parte do repertorio fenomenológico.
Por outro lado, se aquele pacote, o de experiências, for desagradável, por alguma razão, temos aí uma postura pessimista, um olhar muitas vezes cínico e cético. Esse pessimismo, ou melhor, esse olhar de suspeita, como diria Foucault, tende a compreender a realidade humana como um grande espaço trágico, cheio de incerteza, até mesmo de caos. A relação entre sujeito e objeto jamais é pacífica, mas sempre problemática, tensa. O mundo, a natureza, ou são dominados, através de técnicas especificas e de um controle constante, ou dominam, escravizando consciências e corpos. Não importa o desfecho da história, existe sempre aqui uma tensão fundamental, uma espécie de abismo entre sujeito e mundo, até mesmo um vazio persistente, uma lacuna jamais preenchida.
Nesse cenário mais pessimista, uma boa estratégia retorica é o uso da genealogia, aquela mesma imaginada por Nietzsche. O compromisso genealógico não passa pelos critérios de validade, pela confrontação de argumentos, numa espécie de duelo intelectual. O objetivo é resgatar o corpo de fundo que gerou determinado arranjo, determinado argumento, corroendo assim as camadas de justificação que foram sobrepostas. Ou seja, nos bastidores de todo encadeamento existe um suporte sensível, experiencial. Entender um enunciado, portanto, é entender o corpo que o gerou, as linhas de força que cruzaram seu caminho. Somente assim, somente através desse resgate genealógico de um corpo de fundo, um argumento pode ser questionado. No instante em que vem a tona, esse pedaço de carne fragiliza tudo ao redor, criando assim brechas, linhas de fugas, ou seja, todo um campo de possibilidades. O confronto entre argumentos, discursos, teses, em termos nietzschianos, não leva a lugar algum, a não ser a um espaço metafísico e atrofiado. A associação livre, na psicanálise, talvez seja um ótimo exemplo de uma prática genealógica, um tipo de estratégia que implode a linguagem, ao resgatar o corpo perdido nos enunciados.
O grande obstáculo no caminho da genealogia, ou mesmo na própria psicanálise, é um detalhe fenomenológico curioso. É comum o sujeito confundir seu corpo com o próprio mundo, jamais diferenciando os dois. Ou seja, um corpo frustrado, sem sentido, produz um mundo equivalente, um espaço também carregado de frustração e vazio, além de toda uma linguagem que segue o mesmo rumo. Fazer com que o sujeito perceba o processo produtivo por trás de sua linguagem, e toda uma série de linhas de força que atravessa seu próprio corpo, esse é o grande desafio da genealogia. Ela não busca trazer á tona uma verdade por trás das coisas, mas apenas a esteira produtiva existente, aquela que foi esquecida, reprimida em nome das belas justificações. É o campo de possibilidades que é resgatado pela prática genealógica, aquilo que Deleuze chamou de virtual e Marllamé, o poeta, chamou de “lançar de dados”.
O discurso científico, especialmente aquele pessimista, ressentido, não é uma simples descrição de mundo, numa espécie de tautologia, ou seja, não é um gesto inocente de um sociólogo diante de um objeto a ser representado. Esse ressentimento, essa visão muitas vezes áspera, é reflexo de um pacote de experiências, de um corpo dentro de certos arranjos. Entender esses arranjos é o grande desafio retorico, a grande arma de uma verdadeira critica. Combater argumentos com argumentos não leva a lugar nenhum, e no fundo, bem lá no fundo, sabemos bem disso. Somente quando corpos se reconhecem como corpos, como apenas pedaços de matéria com certa história, só assim mudanças podem acontecer, novas possibilidades podem surgir. Em outras palavras, o corpo ressentido não é propriamente o problema, mas o seu esquecimento, a tendência de ocultar seus traços em nome de discursos bem encadeados, de uma cadeia conveniente de justificativas.
Referências Bibliográficas:
http://www.cchla.ufpb.br/2015/11/debate/