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Foto do escritorAlan Rangel

Uma reflexão filosófica a partir da série Vikings



Nossa coluna semanal navegará a partir de uma pequena reflexão, um seriado histórico e muito rico da History Channel: Vikings. O primeiro episódio da quinta temporada, um massacre dos nórdicos contra os cristãos na Igreja, na pequena cidade de Iorque, no século IX, na Inglaterra, incitou o seguinte ensaio. Esse episódio será uma ponte para discorrer sobre várias questões importantes, especificamente sobre Deus, cultura e religião. Posteriormente, escreveremos mais sobre os Vikings, por isso não pretendemos esgotar as nossas ideias.


A série explora a Era Viking, que começou suas conquistas na Europa, do século VIII até provavelmente fins do século XI. Mostra fatos históricos com doses de ficção. A personagem mais importante até a quinta temporada é o viking Ragnar Lothbrok, interpretado pelo excelente ator australiano,Travis Fimmel. Mas a trama também trata de questões como intolerância religiosa, choque cultural, mitologia, religião, política, status social, sexualidade, classe, estratégias de guerra, geografias etc.


“Proteja-nos, Senhor, da fúria dos homens do Norte. Eles devastam nosso país, matam nossas mulheres, crianças e velhos.” [1] Essa prece se tornou comum na Inglaterra, nas igrejas, capelas e nos lares durante as invasões vikings.


Primeira provocação: em uma Igreja, na qual mulheres, crianças, homens, sacerdotes e padres estão louvando a Deus e Jesus Cristo, como é possível que os vikings - suecos, noruegueses e dinamarqueses -. armados até os dentes, entrem no recinto religioso e massacrem todos os fiéis de forma brutal e sem sensibilidade? Por que Deus deixou que tal massacre ocorresse em um local de culto e louvor? Por que em um ambiente de paz e adoração?


Como explicar o Cerco de Paris, ocorrido em 845, durante os festejos da Páscoa, data sagrada para os cristãos, no qual os vikings invadiram a cidade, saqueando, queimando e matando muitos francos religiosos? Como isso foi permitido aos olhos de Deus?


Segunda provocação: ter acontecido o massacre significa que Deus puniu todos os pecados do povo e dos seus antepassados pagãos? Ou Deus não existe e tudo que ocorre no mundo é pelas circunstâncias reais criadas pela ação humana? São pontos muito complexos.


Os deuses nórdicos, Odin, Freya, Thor, Frigg, Loki ajudaram os escandinavos cruéis a invadirem os reinos da Inglaterra contra o Deus Cristão? Na concepção dos nórdicos, sim! Para eles, os deuses favoreceram a sua expansão, os saques e as grandes conquistas. Os nórdicos acreditavam que o destino deles estavam nas mãos dos deuses. A derrota nas batalhas significava que Eles – os deuses – estavam zangados com seu povo. Era comum para os escandinavos fazerem sacrifícios de proteção divina às suas batalhas mundo afora. Não era nada absurdo para os nórdicos o sacrifício de pessoas e animais para glorificar Odin. Este, sendo o maior dos deuses, estaria no seu trono esperando seus bravos guerreiros mortos em batalha, para beber e comemorar em Valhala (o grande salão sagrado dos deuses situado em Asgard).




Odin, o principal Deus da mitologia nórdica.



Avancemos mais um degrau. Na quarta temporada da série, existe um diálogo muito interessante entre o rei Egbert (interpretado pelo ator inglês, Linus Roache), do Reino de Wessex, Inglaterra, e o rei dos nórdicos, Ragnar Lothbrok. Este questiona com Egbert que talvez Deus ou os deuses não existam. Egbert responde que Ele tem que existir, pois qual sentido há para o povo sem a existência Dele. “As pessoas precisam acreditar em algo maior para que a vida tenha sentido”. A mesma reflexão se passa com a famosa Dama do Escudo, a Rainha guerreira nórdica, Largatha (protagonizada pela linda e talentosa atriz, Katheryn Winnick). Em um diálogo com uma de suas servas, ela reitera que Odin e os deuses precisam existir, pois a vida não teria sentido sem a existência deles. Qual lógica haveria para os vikings guerrear, navegar e invadir territórios, arriscando suas vidas e o abandono de suas famílias, se não acreditassem em Valhala?


No século XIX, o escritor russo Fiódor Dostoievsky, em sua maior obra, Os Irmãos Karamázov, coloca a mesma questão sobre Deus, através da palavras da personagem Ivan Karamázov:


[...] O segredo da existência humana está não apenas em viver, mas também encontrar um motivo para viver. Sem uma ideia clara de motivo da existência, o homem prefere renunciar a vida mesmo cercado por monte de pães, prefere destruir-se a permanecer na terra. [...] [2]


Há várias passagens do seriado que coloca dúvidas sobre a existência de Deus ou dos deuses. São nessas curtas cenas que temos que refletir sobre a pessoalidade das divindades. Povos e culturas se apropriaram historicamente sobre a explicação do Sagrado e, falando por Ele, justificaram enormes barbáries contra outros seres humanos, na crença de que a(s) divindade (s) estão ao lado do seu povo contra todos aqueles que estejam em seu caminho. Ainda, na fala de Ivan Karamázov:



[...] Cada povo cria seu Deus – ou os seus deuses - , cada povo grita um ao outro: “ Deixem seus deuses, e venham logo adorar os nossos deuses! Senão, morte a vocês, e aos seus deuses! Assim será até o fim do mundo, quando até os deuses desaparecerem da face da Terra; não importa: os povos querem cair de joelhos diante de seus ídolos. [..] [3]


Nas palavras do filósofo materialista alemão Ludwig Feuerbach:


[...] Para cada religião os deuses das outras religiões são apenas as ideias de Deus, mas a ideia que ela tem de Deus é o seu Deus mesmo, Deus como ela o imagina, o Deus legítimo, verdadeiro, o Deus como ele é em si. [...] [4]


A personificação de Deus à imagem e semelhança dos sentimentos, pensamentos e práticas humanas, justificou historicamente todo tipo de preconceito, intolerância, assassinato e, escravidão. Antes mesmo do materialismo de Feuerbach, acusando os homens de inventarem Deus, muitos filósofos já haviam questionado Sua humanização, deslocando-o para uma compreensão que está além de qualquer definição limitante racional. Deus seria o Incognoscível, escapável à lente da lógica, da razão, impessoal, distante dos atributos humanos.


Seja como for, a História tem nos mostrado que o Sagrado foi sempre humanizado, mas nunca se mostrou pessoal. É a leitura interessada e equivocada que atribui favorecimentos. Insistir nesse ponto é negar, esconder ou não aceitar o que o passado tem nos mostrado. A personalização da Transcendência foi uma grande invenção da humanidade! Deus não interfere em A ou B, supondo que um mereça mais do que o outro, seja porque é pobre ou rico; seja porque é homem ou mulher; porque é católico, protestante ou budista; seja porque é negro, branco ou amarelo; porque é latino, africano, europeu ou asiático! Toda apropriação e monopolização que se refere às concepções divinas sempre estiveram atreladas a cultura de um povo, pelas suas necessidades reais: o mistério da vida e morte, a economia, a política, a ideologia, o militarismo e status.


Caros leitores, se existe algo como o Sagrado, este não pode ser compreendido como um atributo pessoal. Toda tentativa de entender assim é má-fé. Apesar das provocações, estejam livres para discordarem de todo o texto, afinal somos livres pensadores.


Recomendo que assistam ao seriado e reflitam sobre essas questões.


Até a próxima!




Fontes:


[1] https://super.abril.com.br/historia/a-furia-nordica/


[2] e [3] DOSTOIÉVSKY, Fiódor. Os Irmãos Karamazov. São Paulo: Martin Claret, 2016. p. 282.


[4] FEUERBACH, L. A essência do cristianismo. Tradução de José da Silva Brandão. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. p. 48.


Imagem 1:

http://www.natyvosdigitais.com.br/2017/10/18/17565/



Imagem 2:

http://www.ancientpages.com/2016/10/27/odin-norse-god-war-magic-complex-figure-norse-pantheon/

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