Bata panela!!!... Brincadeira.
Na teoria social alternativa, especialmente na psicanálise, o elemento patológico é visto de um modo bem incomum, um pouco distante dos contornos da vida cotidiana, ou até mesmo de alguns corredores universitários. Por mais radical que seja, e até perigosa, a patologia é vista aqui como um tipo de estratégia, uma forma atrofiada de se conectar com o mundo. O objetivo de uma analise, portanto, não é a revelação da verdade por trás do que é dito, mas a tentativa de criar novas conexões de sentido, ou seja, o objetivo é trazer á tona uma nova ferramenta prática, agora mais eficaz, menos dolorosa, mais saudável, o que não significa mais verdadeira. A esquizofrenia, por exemplo, por mais radical que seja, por mais dolorosa, no limite desempenha um papel pragmático incomum, sendo uma estratégia que conecta sujeito e mundo. Uma forma de contornar o problema, nesse cenário, é sugerir novas pontes de sentido, novas alternativas do corpo, novos agenciamentos. E se com a política não for diferente, mas apenas uma extensão do que acontece numa simples análise? Esse é o nosso ensaio de hoje, nada mais do que uma tentativa de entender o conservadorismo (ético) com outros olhos, sugerindo, no processo, outras formas de luta política, especialmente dentro do repertório de esquerda.
Cada patologia, cada estratégia de sentido, como é possível perceber, não é uma resultante de uma escolha racional, de um conjunto de alternativas selecionadas com rigor. Se tem algo que escolhe, esse algo é meu corpo, ou seja, aquele suporte que conecta pontos, criando sempre novas articulações, linhas, curvas, experiências. Embora justificativas sejam articuladas, muitas até de fundo politico, filosófico e cientifico, o protagonista da historia, lá no fundo, nas profundezas do palácio de cristal, como diria Dostoievski, continua sendo o corpo, a carne. O meu corpo cria conexões com o mundo, o que não significa as melhores conexões, mas apenas as disponíveis, as que restaram. Ás vezes são saudáveis, menos estranhas, como o seu apego por seu cão, ou gato, mas as vezes a coisa não é tão conveniente, podendo desembocar em algum transtorno obsessivo, em alguma prática pervertida ou até mesmo criminosa. Os caminhos do corpo, assim como os caminhos do inconsciente, não seguem uma linha reta, clara, ou mesmo estruturada.
Por conta do nosso racionalismo, da nossa crença na razão e na liberdade humana, muitos pensam na postura conservadora (ética) como um problema de carácter, algum desvio, talvez até com algum traço de escolha, ou seja, um tipo de esforço consciente realizado por pessoas malvadas. Eu sei que esse é o padrão, é o caminho seguido pela maioria, mas vamos tentar uma abordagem diferente, pode ser? Vamos propor um outro caminho, talvez mais complexo, mais eficaz. O objetivo, de forma alguma, é negar seus deslizes, ou, pior ainda, justificar suas alternativas. A proposta é apenas sugerir uma outra abordagem dentro do repertorio crítico da esquerda, um outro modo inclusive de minimizar os efeitos da presença conservadora, ao menos a mais extremada.
É comum, em momentos de crise, de medo, angústia, e desespero, indivíduos adotarem uma postura mais pragmática diante da vida, seguindo normalmente uma trilha deixada por grupos conservadores, até mesmo de extrema direita. A caça ao judeus na Alemanha hitlerista, a caça aos imigrantes no governo Trump, ou mesmo a caça aos grupos de esquerda no cenário atual, especialmente na campanha de Bolsonaro, representam estratégias pragmáticas, ou seja, formas imediatas, a curto prazo, e convenientes, de lidar com as frustrações e problemas. O conservadorismo que brota nesse cenário, ao invés de ser pensado como um desvio de caráter, como um deslize ético, ou algo do tipo, pode ser visto também como um problema de circunstância, um deslize do corpo, uma atrofia. Por mais estranho, e perigoso, que sejam certas estratégias, elas não deixam de ser estratégias. Estratégias de um corpo assustado, estratégias de um corpo desesperado, estratégias de um corpo que muitas vezes não tem sequer uma alternativa, a não ser o ódio, a violência e o preconceito.
Ao invés de apontar dedos, de um modo conveniente, ao invés de rotular indivíduos, recorrendo talvez a algum dualismo, ou polarização, por que não oferecer outras formas de convivência, outras pontes simbólicas com o mundo, ou seja, por que não fazer nas ciências sociais o que o psicanalista faz em uma análise? Ao invés de tratar indivíduos como desviantes, como malvados, ou corruptos, por que não entender suas estranhezas como estratégias atrofiadas, desgastadas? Um modo talvez de lidar com a situação, ao contrário do que muitos pensam por aí, não é o confronto direto, como em algum duelo, mas a escuta cuidadosa do analista, seu modo silencioso de quebrar a linguagem, produzindo novas alternativas.
Nós já percebemos, e isso não é nenhuma novidade, o quanto a confrontação direta não resolve o problema, ao contrario, apenas potencializa o ódio, o medo e o desespero. Da mesma forma que em uma analise, o objetivo não é confrontar o sujeito com alguma outra abordagem, condenando ou julgando suas falhas, mas permitir que ele, por conta própria, desenvolva novas possibilidades, através de um espaço criativo e complexo. Na medida em que as associações livres são articuladas, as contradições brotam, as falhas surgem, e, por isso, novos arranjos vem á tona. É preciso deixar que o corpo fale, da mesma forma que é preciso que esse mesmo corpo entenda o mundo em que vive, assim como as conexões disponíveis para si.
Repito mais uma vez, a alternativa não é a busca por um culpado, postura previsível e senso comum, mas sim o entendimento da realidade de um modo complexo, dinâmico e relacional. A esquerda contemporânea precisa de uma nova linguagem, mais eficaz e, principalmente, uma linguagem atualizada, caso contrário, vamos continuar caminhando em círculos, rumo a lugar nenhum, apenas alimentando o ódio, o ressentimento e as polarizações.
Referência da Imagem:
http://www.gazetainterior.com.br/index.php/os-riscos-de-falar-demais/