Recentemente o seriado The Handmaid's Tale, em português, O Conto de Aia, livro escrito pela autora americana Margaret Atwood obteve várias premiações no Globo de Ouro - entregues todo ano aos melhores profissionais do cinema e da televisão dentro e fora dos Estados Unidos. As premiações foram para melhor série de drama; de melhor atriz para a protagonista Elisabeth Moss; melhor atriz coadjuvante e convidada e, por fim, melhor direção. Antes, ainda, no Emmy Awards 2017 - prêmio atribuído a profissionais e programas televisivos - a série já havia faturado todas essas estatuetas.
A coluna dessa semana irá abordar, de forma breve, uma análise crítica do seriado lançado em 2017. Para quem não assistiu espero que seja um bom incentivo. Para os que já viram, poderá ser uma contribuição interessante. O seriado será televisionado no Brasil, pela Paramount Channel, em março.
Elisabeth Moss, vencedora do Globo de Ouro de melhor atriz por 'The handmaid's tale'.
Deus nos livre de uma sociedade teocrática, novamente!!! Me desculpe aos que pensam o contrário. Mas, em nome de um Deus objetivo, monopolizado, e uma religião universal, devo submeter determinadas crenças e ensinamentos a todas as pessoas em nome de uma "Verdade"? Devo utilizar um instrumento religioso para sanar o problema ambiental, o excesso de consumo, o uso de drogas e a violência generalizada? Devo utilizar o medo como meio para um fim maior? Ou seja, a estabilidade?
Em nome de Deus, devo tirar a liberdade individual de expressão corporal, oral, de culto ou associação, em favor de um mundo com estatísticas de crime, luxuria excessiva e desperdício menor? Devo obrigar mulheres férteis a procriar em favor da humanidade? Devo soterrar a liberdade individual para "limpar o mundo" das mais diversas mazelas sociais?
Uma sociedade pós democrática pode debandar para o que O Conto de Aia tenta mostrar: conservadorismo tradicional baseado na religiosidade, na supremacia do patriarcado, do Deus - Pai e nas crenças bíblicas. É uma possibilidade?! O reacionarismo espera o tempo certo para ressurgir! Deus Pai pode retornar ao centro da vida política e social e monopolizar o comportamento, tal como nos tempos medievais. .
Quando o mundo vai mal apelamos para algo transcendente, que seja uma saída para restaurar a paz, em meio aos caos causado por uma sociedade democrática, liberal e capitalista
O que nos resta em uma sociedade distópica (palavra de origem grega, formado por "dys" que significa "mau" e por "topos" que significa "lugar")? A liberdade de consciência! Em um tipo de Estado, no qual o medo impera sobre a liberdade de expressão, a consciência ainda resta. Mas, o que é a liberdade moderna? O escritor francês, Benjamin Constant, define da seguinte forma:
É para cada um o direito de não ser submetido senão às leis; de não poder ser preso, detido, condenado a morte nem maltratado de maneira alguma pela só vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para cada um o direito de manifestar sua opinião, de escolher sua profissão e de exercê-la; e de dispor de sua propriedade ou mesmo de abusar dela; de ir e vir sem precisar de permissão e sem prestar contas dos seus motivos ou dos seus passos [...]. [1]
Ainda de acordo com Constant, a liberdade moderna consiste na defesa dos direitos privados por parte do Estado. É a garantia dos prazeres particulares que consiste na autonomia dos indivíduos.
O Conto de Aia, se assemelha a outras famosas distopias, como 1984 e Admirável Mundo Novo. Mas, em qualquer sociedade onde impera o medo, a força ou todas as formas de totalitarismo, sempre haverá aqueles que resistirão. Em 1984, do escritor George Orwell, o protagonista, Winston Smith, resistiu até quanto pôde. Caso semelhante em Admirável Mundo Novo, de Adouls Huxley, onde o protagonista, Bernard Marx, passa a contestar todo o sistema de condicionamento construído; condicionamento, aqui, começa desde a formação dos fetos, o que irá interferir na inteligência de cada bebê, sendo uma métrica para a hierarquia social.
O que essas histórias nos ensinam, do ponto de vista sociológico - e esse é um ponto importante - é a impossibilidade de qualquer sociedade absorver todas as consciências individuais em uma supra consciência coletiva. Para Durkheim (2012),
[...] Uma uniformidade tão universal e tão absoluta é radicalmente impossível; pois o meio físico imediato em que cada um de nós está inserido, os antecedentes hereditários, as influências sociais de que dependemos variam de um individuo ao outro e, por isso, diversificam as consciências. Não é possível que todo mundo se pareça neste ponto, simplesmente porque cada um tem seu organismo próprio e que este organismos ocupam áreas diferentes do espaço [..] . [2]
Ainda,
[...] Desta forma, uma vez que não pode haver sociedade onde os indivíduos não divirjam mais ou menos do coletivo também é inevitável que, dentre estas divergências, haja aqueles de caráter criminoso. Pois o que lhe confere este caráter não é sua importância intrínseca, mas a que lhe é dada pela consciência comum [...]. [3]
Mas no país da república Gilead , os bebês serão condicionados, exclusivamente, após o nascimento, para se adequarem aquele tipo de sociedade teocrática. Em uma organização social que baseia o centro da vida na ideia de Deus, a técnica e a ciência não podem ir contra a lei natural do nascimento biológico; diferente do mundo assombroso descrito por Huxley, no qual os bebês são gerados artificialmente.
Um ponto importante a ser mencionado é que a moral e o direito não estão apartadas em Gilead. Mentir, por exemplo, é passível de punição do Estado; assim como relacionamento fora do casamento também é passível de punição, morte ou mutilação. A moral, portanto, é institucionalizada e deixa de ser uma atitude de foro íntimo., o que implica uma redução da liberdade individual de deliberar sobre suas próprias ações.
E, como em todo tipo de sociedade, há novas hierarquias, nesse caso baseadas não só na renda, mas no gênero e na religiosidade. E a condição da mulher? Inferiorizada moralmente em qualquer classe que esteja. O paternalismo, baseado nas Escrituras Sagradas, é o farol para uma sociedade andocêntrica que comanda o lar, os negócios do trabalho e a estrutura política do país.
O seriado traz uma questão bem interessante sobre a imoralidade. Mesmo em uma sociedade onde as regras são bem rígidas e o teor ético e moral estejam bem estabelecidas juridicamente, fadado a punições de toda ordem, ações imorais, por parte daqueles que comandam a estrutura política e social do país, são comuns. Exemplos como a traição, os atos sádicos e a ida aos bordéis são frequentes. Tudo feito debaixo dos panos e, claro, se exposto publicamente, a sanção é inevitável. O que nos remete a eterna luta entre o corpo e o espírito. O espírito, a razão, é o luz que leva o ser humano a se aproximar do transcendente; enquanto que o corpo, a matéria, sempre foi vista como um desvio da boa conduta. O filósofo grego Platão e, posteriormente, a cristianização da suas ideias, principalmente pelo grande teólogo da Igreja Católica, Santo Agostinho, procurou direcionar aos seguidores fiéis, que o corpo e todas as suas sensações são impermanentes e ilusórias, desviando o ser humano do eterno, da onisciência da divindade, do mundo verdadeiro.
Para finalizar, The Handmaid's Tale nos deixa em alerta para a latente possibilidade da redução do espaço individual em favor de uma totalidade que expressa uma pseudo vontade coletiva universal, mesmo que às duras penas, e não importando que grupos ou minorais sejam prejudicadas com as mudanças ou que suas liberdades sejam castradas.
Fontes:
[1] CONSTANT, Benjamin. A lliberdade dos antigos comparado a dos modernos. São Paulo: Atlas, 2015, p. 85-86.
[2] e [3] DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Edipro, 2012, p. 85.
Imagem:
1 - http://oitoemeio.com/2017/06/16/the-handmaids-tale-e-a-serie-mais-perturbadora-de-2017/
2 - https://mdemulher.abril.com.br/famosos-e-tv/elisabeth-moss-faz-discurso-com-trecho-de-the-handmaids-tale/