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O ESQUECIMENTO DO ESQUECIMENTO: Gabriel Tarde e o resgate de um clássico



Gabriel Tarde, personagem quase esquecido da história do pensamento social, condenado a algumas discussões marginais no campo da psicologia e do direito, enfim ressurge. A proposta desse ensaio é justamente traçar um leve esboço dessa figura cada vez mais resgatada no interior da teoria social, entendendo um pouco seus contornos e suas implicações.


Embora tenha tido no inicio da carreira uma boa repercussão de suas ideias, em especial no campo antropológico, com seu dialogo com Lombroso, ou mesmo no campo sociológico, com as polemicas acaloradas com Durkheim, acabou sendo excluído de um novo domínio a ser formado, um espaço com fronteiras fixas e impenetráveis.


A sociologia, na época, começava a apresentar limites bem demarcados, através de métodos assépticos, higienizados, com aquele polimento bem positivista. Havia uma busca ansiosa por legitimidade acadêmica, conseguida apenas, ao menos na época, através de aproximações insistentes com as ciências biológicas e físicas, numa clara tentativa de conferir maior firmeza, identidade e confiança ao conhecimento aí gerado. Tarde seria, talvez, um psicólogo social ou, no máximo, com um pouco de esforço, um “microssiologo”, quando não, uma espécie de protopensador, alguém que apenas instituiu rudimentos de uma sociologia em breve superada por Durkheim e sua ciência plena do social.


Com o passar do tempo, através de alguns pensadores como Deleuze e Latour, esse personagem ressuscita de seu sono intelectual e passa a ganhar uma força cada vez maior. A predominância do vitalismo no espaço acadêmico e principalmente sua invasão nas ciências sociais, garantiram a Tarde o status necessário e o lugar adequado para disseminar suas categorias, ao passo que se transforma, aos poucos, num evidente ancestral e numa referencia marcante para muitos autores contemporâneos, sejam eles filósofos, sociólogos, antropólogos, etc.


Dentre os vários conceitos que circulam pelo seu universo, destaco a repetição, a diferença e a imitação, não porque sejam os principais, o que pode ser o caso, mas sim porque são três pontes convergentes para o pensamento vitalista, deleuziano, e para os questionamentos específicos desse ensaio. Entender o papel do vitalismo nas ciências sociais, passando pela ancestralidade de Tarde, é o principal objetivo dessas linhas.


Existiria, talvez, um jeito mais imediato, meio senso comum, de conceber a repetição. Para Gabriel Tarde, por outro lado, ela nada tem a ver com permanência, hábito ou identidade, ou seja, com aquilo que normalmente é associado a esse conceito. O que é repetido, assim como em Deleuze, não é uma serie causal, uma esteira idêntica de fenômenos, mas uma espécie de inclinação ao novo. A repetição sempre adiciona alguma coisa ao fenômeno, sempre forçando suas fronteiras para uma nova remodelagem.


Os três termos tardianos, diferença, repetição e imitação, nesse caso, convergem para um mesmo solo vitalista, ao abrir espaço não para realidades definidas, representações sobrepostas, ou categorias transcendentais. O que é repetido guarda dentro de si um potencial intenso, transbordante, se inclinando para novos agenciamentos, deslocando as continuidades e permanências de seu centro epistemológico. Em outras palavras, a identidade não deixa de existir em Tarde, assim como as categorias sujeito-objeto em Latour, embora elas se encontrem, por outro lado, descentradas de sua posição de excelência e transformadas em instantes passageiros, em momentos casuais, lançados numa repetição sem fim.


Como para esse sociólogo tudo é uma sociedade, desde uma simples célula até um cardume se agrupando num coral, passando por encontros religiosos e polemicas politicas, a repetição atravessa tudo, permitindo que humanos e não-humanos cooperem num jogo rico de virtualidades, todos num ritmo sempre inédito de descobertas e articulações. Não importa se estamos falando da repetição ondulatória, gravitacional, hereditária ou imitativa; todas implicam num mesmo principio repetitivo e “profusor”, num mesmo solo heideggeriano contrário a predicados e enquadramentos. O que existe apenas é excesso e avidez, assim como a célula nietzschiana, sempre em busca de mais expansão e potência.


O espaço, o tempo, ou qualquer outra categoria a priori, vê a si mesma dependente desse movimento repetido, dessa virtualidade sempre contagiante, sempre se propagando para o infinito com aquela vontade expansiva, insatisfeita. Não é á toa, inclusive, que Tarde vê a imitação, com seu contagio bem rizomático, como geradora dos eventos repetitivos do universo humano. As coisas “não são” para Tarde, elas se possuem, se conectam e ultrapassam sempre a si mesmas, subvertendo a própria unidade individual que supostamente teriam, mascaradas pelo mais antigo artificio da linguagem: o verbo “ser” e sua mania transcendente. A essência não é um adjetivo, um rótulo necessário, ou uma marca profunda no corpo do fenômeno, mas a condição mesma de sua difusão, uma quebra de fronteira. A origem não sendo um núcleo atual, no sentido deleuziano, é um solo de novidades, um encontro de linhas de força.


O critério determinante, como já era de se esperar, não é de validade, como se houvesse um corte atemporal entre o verdadeiro e o falso, transparente ao sujeito esclarecido. A origem é genealógica, ou seja, é um fundamento virtual em que a própria enunciação do evento, suas conexões e implicações, já é um mergulho em sua profundidade, um acréscimo á sua expansão. O sujeito desinteressado kantiano, o protótipo do cientista tradicional, uma vez descolado do mundo, enxergando de cima suas variáveis e suas determinações, é substituído não por uma outra transcendentalidade, um outro eixo vertical de significado qualquer, mas sim por um conjunto de mônodas descentradas.


O individuo, por consequência, não é uma célula isolada, um corpo ascético e bem esboçado, ou talvez um núcleo causal brotando de alguma transcendentalidade qualquer. Isso implica o abandono do rotulo de individualismo metodológico quando falamos de Tarde, já que não há indivíduos no seu esquema de pensamento, mas mônadas lançadas numa esteira infinitesimal, ou, em outras palavras, um feixe de múltiplos contatos, um suporte de convergência para varias linhas de força. Seu projeto é de uma monodologia renovada, ao resgatar, como ponto de partida, as reflexões de Leibniz e sua filosofia monista, embora ultrapasse suas conclusões, dando ao conceito de mônoda um aspecto mais diferencial e mais aberto. Seria a mônoda um átomo, um tipo de particula elementar indivisível? Não. Para Tarde, mesmo esse átomo não deixa de ser um universo complexo, um ponto de encontro de várias linhas de força.


Com essas premissas não há lugar para dualismo, nem entre sociedade e cultura, muito menos entre eu, entendido como núcleo individual, e o coletivo, algo autônomo e sui generis. Essa unidade metafisica chamada eu, e toda sua identidade bem a priori, responsável pelo ordenamento da experiência e sua síntese necessária, é desmontada na exata medida em que ocorre a repetição no universo humano, ou seja, quando ocorre o processo imitativo e seu crescimento rizomático, seu deslocamento descentrado. O individuo já é um feixe diferencial, complexo e dinâmico; ele já é uma sociedade. Assim como Newton revela um universo múltiplo, dinâmico e ilimitado, deslocando o cosmos de sua unidade e harmonia aristotélicas, Tarde realiza o mesmo percurso, ao desregular a funcionalidade do todo, reestabelecendo a importância das partes, essas já plurais e abertas.


O principio imitativo nada mais é do que o desdobramento específico da repetição no universo humano, embora seja necessário prestar maiores considerações a ela, o que acaba nos levando direto para a polêmica com Durkheim. Se a cadeia explicativa durkheimiana para os fenômenos sociais é vertical, priorizando instancias autônomas e externas como responsáveis por condutas e discursos, Tarde, ao contrario, aposta num principio horizontal, sem mudanças de níveis, imanente.


O conceito de rizoma, em Deleuze, esclarece bem essa proposta e principalmente a capacidade de expansão do movimento imitativo e sua avidez em conquistar tudo a sua volta. Sem pontos de partida ou teleologias, o rizoma não é uma criatura, um objeto, mas sim uma força motriz, um impulso que se irradia tomando tudo ao seu redor. Isso significa que é impossível sugerir uma explicação de um processo rizomático, no sentido de compreender analiticamente esse fenômeno, desmembrando variáveis e expondo conexões necessárias. Ao contrario, eu participo do rizoma, ainda que acredite em uma espécie de desinteresse cientifico. Assim como os “fluxos de desejo e vontade” em Tarde, o rizoma deleuziano não é um simples elemento explicativo, ele induz á participação, ao envolvimento instantâneo. Assim como o olhar genético lança o sociólogo direto no espaço que deveria explicar, transformando-o num combatente, num justificador engajado, o rizoma já demanda afecção, já força um encontro, por mais asséptico que pareça o cientista com seu jaleco branco e sua postura moderna, confiante.


Referência da imagem:


https://brunoscofield.jusbrasil.com.br/artigos/385524991/direito-ao-esquecimento-e-o-direito-a-memoria


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