Já leu o jornal de hoje, já deu uma olhada nas manchetes, aquelas que falam de política contemporânea? Sério?!!! Sem mais uma religião sólida, sem aquela segurança transcendente dada por um universo bem resolvido, pelo menos existia, há pouco tempo, um tipo de metafísica imanente, uma metafísica conectada a um projeto de sociedade, seja esse projeto algo mais de esquerda, como o coletivismo, ou mesmo um projeto de direita, esse mais individualista. De qualquer modo, existia um projeto de sociedade, um modo esperançoso de entender a vida em comum, um tipo de expectativa mais ampla.
Hoje em dia, como é possível perceber, mudamos mais uma vez nosso horizonte metafísico. Duas novas entidades substituíram os projetos anteriores e acabaram ganhando espaço em nosso cenário público. A primeira delas é a natureza como um grande organismo funcional, um tipo de templo a ser respeitado, uma espécie de criatura imaculada, perfeita, a não ser quando o humano aparece, desregulando sua castidade. Embora seja muito interessante, enquanto material de reflexão, esse não é o nosso objetivo agora, nessas linhas, ao menos por enquanto. A segunda entidade, e esse é o ponto do ensaio, é o corpo, mas não isso aí em você; não essa coisa de carne e osso, não esse conjunto de orgãos e fluidos, não. O corpo aqui é de outra ordem, é um corpo redentor, um corpo reconciliatório, uma nova metafísica.
“Não existe relação sexual”, essa é praticamente uma frase de para-choque de caminhão, ao menos um caminhão lacaniano. A sexualidade nunca é exercida de um modo direto, puro, inocente, nunca é um espaço confortável, e isso porque tem você no meio, o outro. Não existe aqui nada a ser emancipado, justamente porque não existe nenhuma essência ou, ao menos, nenhum espaço de redenção. A bandeira da liberdade sexual, presente no movimento LGBT +, é, sem dúvida, uma luta importante, embora o pressuposto seja um problema. Como bem dizia Kant, em sua metafísica dos costumes, é comum alguém fazer a coisa certa pelo motivo errado. A luta em si faz sentido, a resistência em si faz sentido, mas o pressuposto da luta é um problema. O corpo se tornou uma bandeira, na verdade mais do que isso, o corpo se tornou uma nova metafisica, um espaço de esperança, um espaço de plenitude. “Afirmar o próprio desejo”, esse é o slogan contemporâneo, é a palavra de ordem do dia. Como se o desejo fosse algo fácil, como se não carregasse frustrações, oscilações, fantasias, crises, ou seja, como se não carregasse toda uma série de armadilhas. O desejo, não importa se hetero, bi, tri, homo, vai ser sempre um objeto problemático, sempre um ponto mal resolvido, a não ser na masturbação, momento em que não existe alterego, e sim um “eu” prolongado.
Como já deixei claro, a luta LGBT + é completamente válida, uma luta fundamental, indispensável nos dias de hoje. Minha crítica, portanto, seguindo a trilha kantiana, não é direcionada à proposta, à pauta, mas aos bastidores, ao seu pressuposto. Como bem dizia Nietzsche, não é preciso metafísica para se continuar criando, não é preciso fantasiar algum ponto reconciliatório, ideal, perfeito. Mesmo sem essa saída neurótica, nos termos freudianos, ainda é possível continuar vivendo, inventando. Não é necessário entender o corpo como um templo, como um ponto de redenção. É possível continuar afirmando seus contornos, mesmo sem aquela ingenuidade persistente. Seja você quem for, não importa o percurso trilhado pelo seu desejo, não importa o local de sua condensação, ele vai ser sempre um obstáculo, e isso porque “não existe relação sexual”.
O que você tem aí, leitor, é um corpo sem orgão, um ponto de ruptura, dissonância, um espaço impossível de ser nomeado, resolvido. O que você tem aí, leitor, muitas vezes é um peso, um pedaço de matéria insistente, um suporte que força um dualismo, dualismo que talvez você, intelectual, queira evitar. Não existe divisão entre corpo e mente, sério? Tem certeza? O corpo, ao menos aquele psicanalítico, não é seu berço, não está aí por você, como uma cama de plumas esperando o trabalhador exausto. Quando o real aparece, e acredite, ele aparece muito, sempre deixa marcas dolorosas, principalmente na linguagem, em nossas próprias redefinições. O corpo, esse aí sem orgãos, é o real, é a mancha que fere o signo, é a barra do esquema lacaniano S/s, ou seja, é justamente o instransponível, aquilo que não pode ser nomeado.
O desejo não tem objeto, é disperso, confuso, mesquinho. E isso não por causa de ninguém, não por causa de um inimigo que eu poderia representar. O desejo é problema, e no fundo todo mundo sabe disso, mas ninguém quer admitir. Afinal, precisamos acreditar em algo, e o corpo pode ser esse algo, essa fortaleza, essa metafísica.
Fonte.
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