Recentemente, comecei a assistir o seriado The Walking Dead, e, ao contrário do que muitas pessoas imaginam, a série não tem como foco pessoas matando zumbis, com famosas cenas de terror. A distopia é centrada na luta entre humanos pela sobrevivência. A questão de fundo é sobre como sobreviver em um mundo no qual as regras sociais (as leis) e a moral perderam validade, pois em vez da ordem o que existe é o caos.
Thomas Hobbes, um filósofo inglês do século XVII, na obra Leviatã, preconizou, em uma hipotética teoria, que antes da construção de uma ordem política , vivíamos em um estado de natureza regido por leis naturais (normas gerais estabelecidas racionalmente proibindo o ser humano de se autodestruir ou privar-se de todas condições para preservar-se). No estado de natureza de Hobbes, onde todos nasceriam livres e iguais, os humanos são racionais, ou seja, capazes de tomar decisões calculadas. Logo, o estado de natureza não é o reino da irracionalidade ou da completa barbárie. No entanto, esse estado em que homens e mulheres são dotados de inteligência, reina o auto interesse, que colocava os desejos de todos em conflitos, em um estado de guerra de todos contra todos. “Homo homini lúpus”, o homem é o lobo do homem, dirá o autor.
O estado de natureza, portanto, é um estado de anarquia. Por mais que a razão tenha alcançado um nível de evolução considerável, o ser humano não estaria imune de sua carga biológica, como o desejo de vingança, o medo da morte, a desconfiança, a inimizade e a glória. Seriam inclinações própria da natureza humana que geram desagregação e causam constante temor.
[...] quando desejam a mesma coisa e não podem desfrutá-la por igual, tornam-se inimigos e, no caminho que conduz ao fim ( que é, principalmente, sua sobrevivência e, algumas vezes apenas seu prazer) tratam de eliminar e subjugar uns aos outros. [...] (p. 107) [1]
Para controlar a inclinação do homem a cometer a barbárie, uma guerra total, seria necessário que eles próprios se unissem afim de criar leis escritas e bem ordenadas, em um hipotético pacto social. Não bastariam só palavras, seria necessário o poder da espada, das armas, pois a inclinação humana a desobediência é real. A sociedade política ou Estado para Hobbes seria então um ente artificial capaz de tentar impedir de todos os modos o enfrentamento entre os homens. O Estado, e seu governante ou governantes, teria a função ética de controlar os impulsos cegos, exigindo do ser humano o máximo uso da razão visando o bem comum; reino da ordem, da disciplina e do bem-estar contra o medo e a insegurança do estágio pré-político.
No século XX, o psicanalista Sigmund Freud, em O Mal Estar da Civilização, apontou que a “civilização é a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si”. ( p. 49) [2]. Esse último fim importa bastante, pois, é a civilização (Estado para Hobbes) que estimula o cultivo de atividades psíquicas mais elevadas, como as invenções artísticas, a ciência, a filosofia, a religião, a moral, a produção de cultura. O poder da comunidade, respaldado pelo Direito, é capaz de impedir atitudes egoístas, como o uso da força bruta, ou uma liberdade irrestrita na busca do prazer. Também, a civilização pôde ser capaz de sublimar os instintos vis, mesmo que a duras penas, como os distúrbios psíquicos causados pelas repressões.
Baseado na biologia, Freud aponta que o ser humano possui duas pulsões principais, Eros e Tânatos, amor e morte. O primeiro visa a união, a agregação e a conservação da espécie; o segundo visa um desejo individual insaciável, desagregador, destrutivo, agressivo. A civilização busca reprimir Tânatos e elevar Eros. É a eterna luta entre a busca da saciedade individual e da necessidade de agregação.
Em uma linha evolucionista, o psicólogo Steve Pinker diz:
As sociedades humanas, como os seres vivos, tornaram-se mais complexas e cooperativas com o passar do tempo. Repetindo, isso ocorre por que os agentes se beneficiam quando se agrupam e se especializam na busca de seus interesses comuns, contanto que resolvam os problemas da troca de informações e da punição dos trapaceiros. ( p.234-235).[3]
Ainda de acordo com Pinker, os seres mais complexos, como o próprio ser humano, estreitaram suas relações criando uma cooperação mútua, abafando os conflitos, através da evolução genética e do ambiente social. O estreitamento entre os seres humanos, em um ambiente favorável, gerou uma coexistência relativamente pacífica, não eliminando por completo desejos ou genes egoístas. E mais, genes egoístas não levariam necessariamente seres humanos a serem completamente egoístas. Richard Dawkins, biólogo famoso por sua obra mais renomada, Gene egoísta, falou no Fronteiras do Pensamento, realizado em São Paulo, em 2015, que o o ser humano pode emancipar-se do egoísmo e criar a cooperação, a empatia e o altruísmo. Em suas palavras,
Os humanos evoluíram pelo mesmo processo evolutivo que outras criaturas. Porém, os humanos têm uma vantagem adicional. A ponto que agora já somos capazes de nos emancipar dos genes egoístas. [4]
Dito isso, voltamos ao mundo de The Walking Dead. A série retrata a volta a um estado de natureza. As leis civis e os princípios morais entram em xeque e são gradativamente desconstruídas. Um estado no qual as pessoas lutam prioritariamente pela sobrevivência, com recursos drasticamente escassos, por alimentos e utensílios necessários para manter o máximo possível o instinto natural para a vida, o que o filósofo holandês, Baruch Espinosa, chama de potência de existir, a grosso modo, um impulso inconsciente para perseverar na existência.
Uma sociedade bem ordenada teria um papel civilizador no sentido de aumentar os laços entre as pessoas, desenvolvendo uma solidariedade social cada vez mais duradoura. De acordo com o sociólogo francês Émile Durkheim, o homem social é uma segunda natureza humana, só que artificial. E mais, "o homem só é homem porque é civilizado". [5]
The Walking Dead nos ensina que sem ordem social podemos regredir absurdamente aos nossos instintos mais sombrios, em uma situação permanentemente extrema, na busca pela sobrevivência, perdendo valores construídos que visavam estreitar a relação entre pessoas conhecidas e desconhecidas. Um retrocesso! O sentido de segurança em relação ao desconhecido teria conduzido as civilizações a reduzirem o ímpeto de algumas disposições vis da natureza da espécie.
Com todo cenário trágico do seriado, com pessoas mortas - zumbis - totalmente movidas pelos instintos de saciedade para comer pessoas, o que resta aos sobreviventes, que formam pequenos grupos, é proteger seus próximos, amigos e familiares, em primeiro lugar, e manter uma completa desconfiança de estranhos, pois são inimigos em potencial, não regulados por regras formais comuns a todos.
Por fim, onde o ônus é maior do que o bônus para criar laços com estranhos, na luta pela sobrevivência, é mais propício a discórdia social do que a concórdia ou a coesão. Como não existe garantia de estar vivo há uma constante tensão entre todos.
Fontes:
[1] HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martin Claret, 2014.
[2] FREUD, Sigmund. O mal estar da civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos ( 1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
[3] PINKER, Steve. Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
[4] http://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2015/06/richard-dawkins-relaciona-teoria-dos-genes-egoistas-aos-individuos-cooperativos.html
[5] DURKHEIM, Émile. O dualismo da natureza humana e as suas condições sociais. In_____A Ciência Social e a Ação. São Paulo: Difel, 1975.
Imagem:
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e garantia de estar vivo há uma constante tensão entre todos.