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Foto do escritorEquipe Soteroprosa

Faces da violência: da guerra total ao extermínio


Explosão da bomba atômica Little Boy, lançada sobre a cidade de Hiroshima, em 6 de agosto de 1945.

Quando pensamos na guerra como uma manifestação da violência humana, a concebemos como a última fronteira entre os limites da civilização e da barbárie. Falar em guerra sempre nos evoca a sensação de que falhamos em todas as tentativas de diálogo e que tempos obscuros virão. Em parte, essa sensação e pensamento são verdadeiros, contudo, existem considerações a serem feitas acerca do papel da guerra e da violência na história humana que merecem uma atenção mais detida.


Ao se considerar a guerra como o esgotamento de todas as possibilidades de entendimento entre os povos, esquece-se a sua funcionalidade dentro do mundo político e que na verdade ela faz parte deste. Sim, para alguns pensadores, a guerra é parte fundamental das relações de poder entre os homens que se manifestam na esfera política (Maquiavel, por exemplo). Logo, para o exercício analítico, torna-se muito mais útil investigar de que modo a guerra se configura dentro do mundo político e as maneiras pelas quais as sociedades se ajustam perante essa realidade.


Contemporaneamente muitos são os conflitos bélicos que assolam a humanidade, tanto locais como entre nações, só na última década tivemos as guerras do Afeganistão, do Iraque, da Ucrânia e a Guerra Civil Síria, isso para mencionar apenas aquelas de maior repercussão internacional. Recentemente temos assistido à crescente tensão entre os Estados Unidos e a Coréia do Norte, numa mistura de ofensas verbais, provocações e exibição de poderio bélico entre o presidente Donald Trump e o ditador Kim Jong-un. Essa versão século XXI da Guerra Fria, num clima de tensão decorrente do iminente uso das armas nucleares, resgata o medo vivido no século passado, quando a perspectiva de uma chamada guerra total em escala mundial assombrava a humanidade. O conceito de guerra total foi utilizado por Hannah Arendt para compreender a natureza dos conflitos bélicos que surgiram no século XX e os seus desdobramentos. Como diz o ditado, o bom filho a casa torna, portanto retomo algumas das reflexões da Velha Hannah para discutir a temática proposta na coluna de hoje. Porém, façamos antes brevíssimas observações acerca do que se entende por guerra.


De modo geral, a guerra tem por objetivo a vitória, por meio de conquista territorial ou qualquer outro método que vise submeter um povo a outrem. Um desdobramento quase que natural dos conflitos é o armistício entre os lados contendores, rendição e submissão do lado perdedor às prerrogativas impostas pelo vencedor. Ou seja, independente de quem vença o conflito, o mundo político está preservado, pois ele existe no espaço entre os homens, e enquanto os mesmos existirem (considerando aqui não a existência física individual, mas a permanência do corpo social), as relações entre os povos permanecem. O conceito de guerra apresentado pressupõe a coexistência entre as partes inimigas; o sentido de coexistência aqui empregado não significa convívio pacífico, ou ausência de mortes e opressão, apenas reitera que o objetivo da guerra enquanto ferramenta política de manutenção do mundo dos homens foi alcançado.


Raras seriam as guerras cujo objetivo primordial fosse a extinção do lado inimigo de forma absoluta, que consistiria na eliminação da constituição político-social de uma sociedade. Todavia, desde a antiguidade a humanidade presenciou situações em que o objetivo da guerra tornou-se a erradicação do inimigo, a exemplo da Guerra de Tróia, imortalizada por Homero em suas narrativas épicas; a eliminação de Tróia foi tão completa que durante séculos duvidou-se da sua real existência. Muitos povos enfrentaram processos similares de aniquilação ao longo da história, infelizmente a capacidade humana para a destruição sempre transgrediu as barreiras da criatividade. No entanto, o advento do século XX inaugurou uma nova e assustadora possibilidade no horizonte da guerra.


Quando nos dias 6 e 9 de agosto de 1945 as bombas atômicas Little Boy e Fat Boy caíram sobre Hiroshima e Nagasaki, respectivamente, o mundo assistiu estarrecido o poder de destruição das armas nucleares, capazes de devastarem em poucos minutos cidades inteiras, transformando em cinzas e escombros pessoas e edifícios. Com o advento da era nuclear os homens dispunham dos meios técnicos para exterminar a vida em todo planeta; o agir humano (e a guerra é uma das formas desse agir) atua de maneira a destruir e reconstruir, tanto os produtos feitos pela mão humana como os produtos da natureza. No caso da guerra nuclear o ser humano desencadeia processos que não ocorrem na natureza terrestre espontaneamente, com a finalidade de destruir o mundo natural e o mundo erigido pelo homem, aniquilando tanto a existência de pessoas como a existência de povos inteiros.


A leitura de Arendt desse fenômeno foi tão terrivelmente lúcida quanto nefasta: a era nuclear iniciou um processo sem volta para a Humanidade, no qual o que estava em jogo a partir desse momento era a sobrevivência do homem enquanto habitante desse mundo, considerando que a guerra nuclear posta em ação não seria mais um instrumento da política, ao contrário, a eliminava de cena. Outra característica basilar: impunha uma dinâmica de extermínio dos derrotados, não mais a sua conquista e coexistência. Nas palavras da velha Hannah:


“A guerra deixou de ser a ultima ratio das negociações que ocorrem em conferências, nas quais os objetivos da guerra eram assentados no momento da suspensão das negociações, de modo que as ações militares que eclodiam depois nada mais eram, de fato, que a continuação da política por outros meios. Aqui trata-se muito mais de alguma coisa que jamais poderia ser, de maneira natural, objeto de negociações, trata-se da existência nua e crua de um país ou um povo” (ARENDT).[1]


A guerra total na era nuclear seria esse empreendimento bélico nefasto que consistiria na eliminação sistemática de povos do seu lugar no espaço histórico, cujo o fim em si mesmo seria o extermínio e em seu prognóstico mais assustador, destruiria a todos os envolvidos, sejam vencedores ou perdedores. No mundo moderno, a guerra total foi um produto dos regimes totalitários, porque esses conceberam projetos de aniquilação da constituição político-social de grupos humanos inteiros e operaram dessa forma. Ao aplicarem a guerra total, os governos totalitários impuseram essa dinâmica bélica ao restante do mundo, o que ampliou o horizonte de ação para outros países não totalitários, e a consequência o mundo testemunhou naqueles fatídicos dias em agosto de 1945, ao contemplar com horror o enorme cogumelo de fumaça radioativa. Os Estados Unidos, uma potência não totalitária de valores políticos liberais democráticos, reduziu a cinzas duas cidades constituídas em sua maioria por civis; o alvo, o Japão, apesar de alinhado com o Eixo (já derrotado na Europa) era uma nação imperialista, mas não totalitária. O que isso significou? Que o argumento arendtiano estava correto: a guerra total não ficaria restrita ao modus operandi totalitário e uma vez inaugurada, atormentaria o mundo com suas possibilidades macabras de destruição em massa utilizadas por todos aqueles que dispusessem da superioridade técnica para implementar o genocídio.


Nesse cenário de guerra total, o agir humano substitui a política pela violência, como instrumento de operacionalizar as relações entre indivíduos, e esse é o argumento fundamental da reflexão desse artigo. O mundo das relações entre os homens surgiu como resultado da proximidade entre eles e não da força, tanto que por maior que seja a força de um indivíduo, ela não constitui o poder, este resulta da união das pessoas no corpo social. E esse é o risco imposto pela dinâmica da guerra total, porque ela aniquila o espaço político e os próprios homens, uma lógica puramente da força, não do poder. Para evitar equívocos torna-se importante esclarecer o uso que Arendt fez de alguns conceitos, vou me ater a quatro deles: poder, fortaleza, força e violência.


O poder, segundo Arendt, “corresponde à capacidade humana não somente de agir, mas de agir de comum acordo”. Portanto só se verifica dentro do convívio social; um indivíduo isolado não estabelece relações de poder, pois não exerce uma dinâmica de domínio nem de obediência com ninguém, o poder só existe enquanto aquele sujeito estiver autorizado por outros a exercê-lo[2] e dentro da sociedade, nunca fora dela. A fortaleza representa uma característica intrínseca de uma pessoa ou objeto e está ligada ao caráter individual; seria o que entendemos normalmente por força, só que esta seria o emprego da propriedade das coisas, a ação e não a qualidade. O conceito de força merece um cuidado maior, pois comumente surge como sinônimo de violência, contudo esse conceito designa a energia utilizada para pôr em movimento causas referentes ao conjunto da sociedade.[3] Por fim, a violência seria um instrumento da ação, resultaria do exercício do poder e uso da força; a violência não poderia ser um fim em si mesmo, pois ela seria apenas um meio técnico para se atingir determinados objetivos.


Essa foi a inversão causada pela guerra total preconizada pelo totalitarismo: a violência se tornaria a causa do agir humano, destruiria o poder (enquanto manifestação de um corpo social), eliminaria a política e consequentemente destruiria o mundo dos homens. Se o tom do texto pareceu apocalíptico, se justifica pelo fato de que análise de Arendt não dá margem para eufemismos, tampouco permite a leviandade ao tratar do tema. A velha Hannah testemunhou o horror do sistema totalitário, as milhares de vidas perdidas nas trincheiras e nas câmaras de gás, viu o potencial para a destruição em massa das armas atômicas e viveu a tensão da iminência de uma guerra que eliminaria a vida humana; ela sabia da seriedade com que essa questão precisava ser encarada. Arendt percebeu que a violência se tornara mais do que um instrumento da ação humana, que nos contextos de dominação totalitária passou a ser a razão desse agir, justificada pela burocracia estatal e banalizada pelo funcionamento do regime.


A crueldade da guerra e a atrocidades da violência são tão antigas quanto a existência da humanidade, como dito anteriormente, o extermínio de populações tem inúmeros registros históricos de proporções assustadoras. Como compreender o genocídio das populações ameríndias na colonização da América, que levou a erradicação de sociedades seculares? Como justificar o genocídio em Ruanda em 1994, perpetrado pela etnia hutu contra a etnia tutsi, onde pessoas eram assassinadas feito insetos a golpes de facão em vias públicas, somando assustadores 800 mil mortos? Ou, para não falar apenas em extermínios resultantes de conflitos entre nações ou etnias, como lidar ou explicar os inúmeros assassinatos cotidianos nos grandes centros urbanos resultantes da violência urbana desenfreada? Existe uma tragédia em cada canto do mundo que transforma vidas humanas em estatística. Contudo, a natureza da violência instaurada a partir da guerra total e sua consequente ampliação para todos os níveis da sociedade traz consigo um outro fato assustador: a perversão do que se entende enquanto poder, estado e violência, tornando-os um só e legitimando a violência em toda a sua crueza.


Ao se confundir poder com violência, se extrapolam os limites do que pode ser feito e as justificações de cunho moral tornam-se irrelevantes, tudo se torna instrumental: a vida, a dignidade e os valores. A violência, antes o instrumento, passa a se tornar o fim em si mesmo e transforma o que de fato tem relevância em mero detalhe técnico. A guerra total legitima o extermínio e com isso justifica governos cuja fonte de poder seja a violência, de forma inequívoca ela se torna a essência do governo, quase uma “ideologia” daquela sociedade e nesse quesito mora o perigo; é um processo de autodestruição social. Quando o poder se torna indissociável da violência e esta encontra legitimidade na sociedade, a humanidade certamente caminha para a tragédia. Com a palavra novamente, a velha Hannah:


“O poder está na essência de todo governo, mas a violência não. A violência é por natureza instrumental; como todos os meios, sempre precisa de orientação e justificação pelos fins que persegue. E o que precisa ser justificado por alguma outra coisa não pode ser a essência de coisa alguma [...] O poder não necessita de justificação, sendo inerente à própria existência de comunidades políticas; o que realmente necessita é legitimidade [...] A violência pode ser justificada, mas nunca será legítima. Sua justificação vai perdendo em plausibilidade conforme seu fim pretendido some no futuro”. (ARENDT).[4]


Para concluir, gostaria de trazer novamente um exemplo citado no início do texto, sobre a tensão entre Estados Unidos e Coréia do Norte e o medo decorrente de um conflito com armas nucleares. Mesmo que estejamos diante de um jogo geopolítico complexo e desejemos que a resolução diplomática se imponha, nunca devemos desconsiderar uma hipótese de conflito. Se fizermos um exercício imaginativo num cenário de guerra com armas nucleares, precisamos ter em mente que independente do lado que prevaleça, comunidades humanas desaparecerão e a lógica do extermínio far-se-á presente novamente em escala mundial, com requintes de sofisticação tecnológica para matar compatíveis com o novo século. A reflexão sobre a guerra total e o extermínio decorrente dos nossos caminhos políticos, serve para nos lembrar que diante das possiblidades de tragédia, enquanto parte da humanidade, temos responsabilidades que não podem ser ignoradas.





[1] Trecho retirado do livro “O que é política?”, páginas 91 e 92.


[2] Não devemos compreender aqui o termo “autorizado” como um acordo de boa vontade. Nas relações sociais a aceitação tácita pode ocorrer pelos mais diversos motivos, desde a submissão pela força até o convencimento.


[3] Para Arendt, força também era entendida como o movimento dos fenômenos da natureza.


[4] Trecho retirado do ensaio “Da violência”, contido no livro “Crises da República”, páginas 128 e 129.



REFERÊNCIA:

ARENDT, Hannah. “O que é política?”. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.

ARENDT, Hannah. “Crises da República”. São Paulo: Perspectiva, 2015.

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