top of page
Foto do escritorAlan Rangel

Um olhar da antropologia damattiana sobre o comportamento do brasileiro


Nobres leitores, minha coluna de hoje recupera algumas ideias do antropólogo brasileiro, Roberto Damatta, para discutir brevemente uma das características sociais do brasileiro: a dificuldade de separar as relações entre pessoa e indivíduo. Boa Leitura!


Roberto Damatta, considerado um dos maiores antropólogos brasileiros, através do estudo da antropologia social, com obras como Carnavais, Malandros e Heróis; A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil e O que faz o brasil, Brasil? , buscou compreender um Brasil pouco explorado dos círculos e registros oficiais, um “brasil” do cotidiano, da malandragem, do despachante, do “jeitinho”, do “sabe com quem está falando?”. A tese do antropólogo é de que a lógica subjacente a identidade brasileira é a do relacionismo ou da dialética entre pessoa e indivíduo.


Para entender a realidade tupiniquim é preciso estar atento aos conceitos de indivíduo e pessoa. A primeira corresponde a concepção de sujeito moderno, portador de direitos igualitários, de autonomia, liberdade política e econômica, sendo o Estado o seu servidor. A liberdade é vista, aqui, como negativa, ou seja, mínimo de interferência do Estado na conduta dos cidadãos, herança do liberalismo clássico. O agrupamento territorial é uma Nação; o Estado Moderno de Direito difere de segmentos tradicionais, tribos, estamentos, clãs etc. A ideologia do indivíduo, como centro da esfera social, é um fato histórico, criado pela modernidade ocidental.


Já a concepção de pessoa é dominante nas sociedades ditas tradicionais, de caráter muito hierárquico. Agrupamentos com raízes comunitárias têm por característica o holismo, no qual o indivíduo é subsumido pelo social. Não há espaço para individualidade, pois cada membro da sociedade é marcado desde seu nascimento. Os papeis são fixos, e a hierarquia é claramente exposta como condição para a vida coletiva. A mobilidade social é quase nula. E, como bem identificou o sociólogo francês Émile Durkheim, é a consciência coletiva que orienta e comanda prioritariamente as consciências individuais, através das representações sociais, exemplo das práticas religiosas e da moral familiar.


Para Damatta, o Brasil se caracteriza por ser uma sociedade semi-tradicional, pois incorpora elementos do passado colonial e monárquico, dotadas de um sistema moral e afetivo baseado nas relações familiares, calcadas no patriarcalismo, patrimonialismo social e na herança da escravidão; mas também possui elementos modernos, como os valores republicanos - direitos individuais, igualdade, liberdade e direito a vida. - legados dos ideais da Revolução Fran


Logo, há dois brasis operando para explicar: relações hierárquicas convivem simultaneamente com a lógica das leis impessoais, tanto do direito como do mercado. As relações de pessoalidade (a casa) e de impessoalidade (a rua) não são bem compreendidas pela sociedade brasileira.


O antropólogo explora esta questão comparando com a cultura dos Estados Unidos, da qual as relações familiares, íntimas, dos papeis hierárquicos entre pais-filhos, jovens-idosos, sobrinhos-tios não ultrapassam o espaço da casa, na qual as relações são mais concretas, qualitativas, afetivas. Já o ambiente exterior – da rua - o indivíduo é visto de modo abstrato, tal como promulga as leis impessoais modernas, do Estado e do mercado. O Brasil não conseguiu dar um grande salto entre o rito emancipatório dos deveres do lar e os cívicos.


Ao trazer o caso da Índia, na qual as relações são baseadas em segmentos rígidos, hierarquizantes, Damatta posiciona o Brasil entre o modelo americano e o indiano, focando na existência de uma dialética entre os ideais de igualdade e o tradicionalismo e conservadorismo hierárquico.


O rito autoritário vertical do “você sabe com quem está falando?” expressa a tese de que o uso comum quebra de imediato a relação formalidade, igualdade das leis impessoais, para um conflito autoritário no qual a posição social, longe de ser meramente econômica ( portanto de classe social), centra-se numa esfera moral e estética. É uma questão cultural, que tem raízes no passado colonial, marcado pelas hierarquias, tendo a escravidão como um dos fatores importantes.


A fórmula: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”, retrata a particularidade brasileira, pois a lei fria e impessoal é para os desprotegidos. A figura do mediador ou do padrinho é a tônica que revela um caminho fácil para burlar a autoridade na busca de benefícios privados. Ele faz a mediação entre a pessoa e o aparelho do Estado. Aquele que busca favorecimento é o malandro.


[...] A malandragem, assim, não é simplesmente uma singularidade inconsequentemente de todos nós brasileiros. Ou uma revelação de cinismo e gosto pelo grosseiro e pelo desonesto. É muito mais do que isso. De fato, trata-se mesmo de um modo – jeito ou estilo – profundamente original e brasileiro de viver, e às vezes sobreviver, num sistema em que a casa nem sempre fala com a rua e as leis formais da vida pública nada tem haver com a boas regras da moralidade costumeira que governa a nossa honra, o respeito, e, sobretudo, a legalidade que devemos aos amigos, aos parentes e aos compadres. Num mundo tão profundamente dividido, a malandragem, e o “jeitinho” promovem uma esperança de tudo juntar numa totalidade harmoniosa e concreta [...] (DAMATTA, 1986, p.107).



Há uma “ética burocrática” que convive com uma “ética pessoal”. Essa correspondência, ou conciliação entre um e outro, traça o perfil ou a identidade brasileira. Independente do segmento ou classe social, há uma dualidade entre o público e o privado, o moderno e o tradicional convivendo lado a lado. Esta dualidade é o que define o Brasil.


[...] Pois, temos a regra universalizante que supostamente deveria corrigir as desigualdades servindo apenas para legitimá-las, posto que as leis tornam o sistema de relações pessoais mais solidário, mais operativo e mais preparado para superar as dificuldades colocadas pela autoridade impessoal da regra. (DAMATTA, 1997, p. 247).


Por fim, meus caros, a antropologia de Damatta, iniciada principalmente nas décadas de 70 e 80, continua muito viva para compreender o comportamento dos brasileiros. A discussão em torno dos papéis entre indivíduo e pessoa, como conceitos teóricos bem elaborados, servem, sem dúvida, como uma fonte rica de intensas reflexões e debates, afinal de contas, “o Brasil não é para principiantes”, (Antonio Carlos Jobim)





Fontes:


DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia de dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.




Tags:

158 visualizações0 comentário
bottom of page