Pecado original e expulsão do Paraíso - Michelangelo (Capela Sistina)
Hoje irei tratar de mais uma polêmica que ronda as redes sociais, desta vez – e mais uma vez – relacionada às criticas acaloradas e tentativas de censura à arte no Brasil.
Desta vez o foco da celeuma foi a realização de uma performance, intitulada “La bête”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em que o performer nu foi tocado por crianças que, acompanhadas dos pais, estavam na platéia. A performance, inspirada em Lygia Clark, envolvia a possibilidade de o público manipular o corpo nu do artista, mudando-o de posição. Não irei me ater à performance, que eu não assisti, mas à questão do por que de tanto escândalo, no Brasil, em torno da nudez na arte.
Um primeiro ponto que trago é que o problema não está na nudez. Ou melhor, não é a nudez que é problemática. Todos nós temos corpos e esses corpos, em sua configuração natural, são nus. Nus nós nascemos, nus tomamos banho, nus fazemos sexo, nus somos em nossa corporeidade, por mais que “escondamos” ou “protejamos” esse corpo nu com roupas e (pre)conceitos. Aparentemente dizer isso parece algo banal, mas não é. O escândalo envolvendo a nudez, a meu ver, é um sintoma – neurótico – de nossa dificuldade de lidar com nossos corpos, com a corporeidade nua que constitui nossa própria realidade física, material e concreta, intransponível.
Compreendo que muito desse escândalo em torno da nudez vem da nossa formação moral cristã, herança portuguesa. Se remetermos às primeiras passagens da Bíblia, referente a culpa do “pecado original” de Adão e Eva, temos esta emblemática passagem que retrata a reação destes logo após comerem do “fruto proibido”, o fruto da “árvore do conhecimento”:
“Então os olhos abriram-se; e, vendo que estavam nus, tomaram folhas de figueira, tiraram-nas e fizeram tangas para si. E eis que ouviram o barulho (dos passos) do Senhor Deus que passeava no jardim, à hora da brisa da tarde. O homem e a mulher esconderam-se da face do Senhor Deus, no meio das árvores do jardim. Mas o Senhor Deus chamou o homem e perguntou-lhe: “Onde estás?”. E ele respondeu: “Ouvi o barulho dos vossos passos no jardim; tive medo, porque estou nu; e ocultei-me”. (Gênesis 3, 7-10) - grifos meus
Pois bem... Quem ler todo o capítulo verá que o “pecado original” nada tem a ver com a nudez de Adão e Eva, mas com a desobediência deles em cumprir com a proibição de Deus de comer do fruto proibido, da árvore do conhecimento, que, segundo a promessa da serpente, daria ao homem a imortalidade e todo o conhecimento do bem e do mal, igualando-os aos deuses.
Partindo de uma leitura literal do texto bíblico, Deus não criou o homem e a mulher vestidos, mas nus. E nus eles estavam em seu estado natural, de inocência, tal como crianças ingênuas que não veem maldade na nudez. O problema surge a partir do momento em que os seus “olhos se abrem” e se escondem de Deus com “medo”, “ocultando” sua nudez. Podemos inferir que esse medo e esse esconder-se remete-se ao sentimento de “vergonha”, vergonha do próprio corpo nu, e essa vergonha, na realidade, é resultante de um sentimento de “culpa” originado neles mesmos.
A vergonha e a culpa não existiam antes de terem comido do fruto proibido e de terem “aberto os olhos”. O olhar é que trouxe esse sentimento. Olhar esse que foi um “olhar de julgamento” entre o que é bom e mau. Não foi Deus quem disse aos homens que a nudez era má, mas os próprios homens, com sua vergonha e sentimento de culpa, que se submeteram à autocensura – cobrindo o corpo – e fugindo para não serem vistos em sua nudez.
Feitas essas considerações, voltamos ao tema da nudez na arte. Ao longo de toda a história da arte sempre houve corpos nus, seja nas esculturas, nas pinturas, no teatro, na dança e, inclusive, nos jogos olímpicos e nas guerras. A arte grega é a maior representação disso. O corpo humano servia de modelo para as representações das divindades, da perfeição dos deuses gregos. E, não apenas o corpo nu, mas também o sexo tinha seu lugar, seja ritualizado em contextos religiosos, seja nas representações artísticas, como em vasos, porcelanas e afrescos.
Na filosofia grega antiga temos alguns exemplos de nudez provocativa que se relaciona com essa tentativa de retorno ao estado de natureza, principalmente nos filósofos cínicos, como em Diógenes de Sinope e o Crates de Tebas. Em Diógenes, vemos uma valorização do comportamento natural animal – uma espécie de naturalismo – que se opõe às convenções sociais, exemplificado por gestos provocativos como o de comer e fazer necessidades fisiológicas (incluindo a masturbação) em espaços públicos. Crates segue o exemplo de Diógenes, porém numa atitude menos provocativa, despindo-se de todas as suas roupas, num gesto de absoluto desprendimento material, quando da insistência de ser desposado por Hipárquia de Meronéia e também realizando sexo, com ela, à luz do dia em espaços públicos.
Para nós, como para os gregos dos séculos IV e III a.C., tais comportamentos de nudez naturalista é um escândalo, uma afronta aos bons costumes, às convenções sociais, mas, por que? Simplesmente porque “criamos” esses vetos e censuras socialmente, e naturalizamos essas tabus ao mesmo tempo em que desnaturalizamos nossos próprios corpos, condicionando-os, via disciplina, a um modo de agir cheio de regras, limites e preconceitos, que nada tem a ver com o corpo em si, em seu estado de natureza, mas tem a ver com nosso olhar preconceituoso – culpado e medroso - sobre ele.
Seguindo ainda um pouco da história e da arte, temos, mesmo no cristianismo primitivo, oriental ortodoxo ou no catolicismo, muitas representações de santos nus ou semi-nus. Como exemplos temos o próprio corpo de Jesus Cristo crucificado, além de representações de Santa Maria Madalena, Santa Maria Egipcíaca, Santo Onofre e de São Macário, pra citar os santos mais antigos, dos cinco primeiros séculos da era cristã e do cristianismo primitivo.
Nas paredes de muitas igrejas primitivas, medievais, renascentistas e modernas, há inúmeros afrescos e quadros que representam o Cristo, Adão e Eva e muitos santos nus ou semi-nus, sem que com isso se tenha nenhuma conotação sexual, ao contrário!
A nudez nas artes sacras evidencia a fragilidade humana, através dos corpos descarnados, feridos e martirizados, a condição de pobreza, de desprendimento de todas as convenções, nas roupas em farrapos, a atitude de entrega em sua totalidade, em corpo e alma, para Deus, ou, ainda, em alguns casos, evidenciando uma tentativa de retorno ao estado de inocência perdida, ao estado primitivo de natureza, ao homem e à mulher antes do pecado original.
Por que me detenho nesses exemplos, da filosofia e da arte, tendo em vista tratar-se a polêmica de uma performance contemporânea? Primeiro para mostrar que o corpo nu ou semi-nu sempre esteve presente nas artes, e segundo, para mostrar que mesmo nas artes sacras, que pressupõe, pelo próprio nome, uma certa “sacralização” da arte, o corpo está à mostra, com suas curvas e ângulos, nas carnes gordinhas dos anjos barrocos, ou nos corpos magros e descarnados dos ícones russos ou ainda nas imagens e esculturas do Cristo ou de mártires.
O que diferencia esse corpo nu sacralizado na arte do corpo nu na arte contemporânea? Há realmente uma diferença significativa que justifique o escândalo do público? Creio eu que não.
Conversando com um amigo ator e diretor de teatro, numa brincadeira que fiz quando ele postou nas redes sociais uma performance – se não a mesma performance em questão - em que o performer estava nu, deitado no colo de uma mulher, perguntei a ele:
“Por que os atores adoram ficar pelados?”.
Risos a parte, ele me explicou que o corpo nu é o “corpo neutro”, sem artifícios.
A partir dessa fala, passo a crer que o corpo nu é o modo mais desprendido de usar o corpo do artista como matéria prima para o seu fazer artístico. Em sendo “neutro”, tudo pode ser projetado sobre ele, todas as nossas impressões e sensações, todas as tensões e emoções, todos os desejos e fantasias, tudo o que queiramos ou não materializar seja no gesto, seja no olhar. Nesse tudo projetado, recai também nossos preconceitos, e, principalmente, nosso “olhar pornográfico”.
O que faz como que um público - ou a grande massa guiada pelo alarido estridente de protesto acalorados - considere que o corpo nu de um artista é um atentado ao pudor, quando tudo mostra o contrário, quando considerada uma performance em seu contexto e intensão originais? Dentro ou fora do contexto da cena, tudo pode ser interpretado ou reinterpretado através do discurso. Mas, e o artista, e a cena, e o contexto? Onde fica esse enquadre? Onde fica o momento mesmo do ato artístico? Este se perde ou se distorce, atropelado pela crítica muitas vezes superficial, ignorante e, paradoxalmente, acrítica.
Conversando com uns amigos de outras formações acadêmicas – sociólogos e historiador -, sobre esse evento e sobre o caso do “QueerMuseum”, as discussões perpassaram questões distintas, como a necessidade de existência de censura para públicos de determinada faixa etária, explicação prévia de que haveria nudez nas obras de arte ou na cena, etc etc, e, se, cada um deixaria o filho ou filha pequenos presenciar cenas de nudez.
Como psicólogo tive de me posicionar dizendo que as crianças não têm os mesmos preconceitos que temos nós adultos, em relação à arte e à nudez. Quanto menores, menos preconceituosas elas são. Quanto menores, mais curiosas e mais exploratórias elas são. (Talvez esse tenha sido o caso do ocorrido na performance “La Bete”).
À medida em que vão crescendo, e a depender da educação que vão recebendo no contexto familiar ou nas escolas, é que as crianças vão desenvolvendo o senso - e a censura - moral que diz o que é certo e o que não é certo, o que é bom ou mau, o que é perigoso ou não, o que pode ou não pode fazer.
Um pré-adolescente ou adolescente, ainda na transição entre a infância e a fase adulta, tem a curiosidade e a “excitação”, diante da (re)descoberta do corpo nu e da sexualidade, mas, mesmo assim, a reação, longe de ser de crítica, é de riso, uma algazarra brincalhona, cheia de piadinhas. A crítica veemente vem do adulto que perdeu tanto a curiosidade e a atitude exploratória, quando a capacidade de rir, ficando apenas com o moralismo.
Além dessa questão “etária”, temos ainda um problema sério em nossa sociedade brasileira. Vivemos num país em que a arte é minoritária, e será sempre minoritária, pois vivemos numa sociedade em que uma pequeníssima parcela da população frequenta museus, teatros e cinemas de arte. Não somos educados para a arte.
A grande maioria da população, mesmo aquela que teve acesso a toda educação formal e a cursos mil de pós-graduação, não foi educada para a arte, e a arte sempre será motivo de desconforto e crítica rasa para um público que não entende nada de arte em função de um crônico processo de “analfabetismo funcional”, que vem associado a um “analfabetismo estético e ético”, obscurecido por uma moral cristã conservadora, que apenas protesta e pouco reflete criticamente.
Quando digo que a arte é minoritária não quero dizer que ela seja acessível apenas a uma elite intelectual, mas sim que apenas uma minoria da população tem acesso a uma educação para a arte. O fato de termos uma percentagem tão pequena de pessoas a frequentar museus – cerca de 7% apenas - é uma triste constatação disso, sendo que temos, ao menos nos grandes centros urbanos, uma infinidade de museus e galerias de arte cuja entrada é gratuita ou que custa um ingresso em valor quase simbólico.
A maior parte do publico que frequenta esses espaços culturais são pessoas das classes mais abastadas, de formação universitária. Ainda assim, tendo um grau de instrução mais elevado, isso não garante ter uma educação para a arte. Pode-se ter acesso aos meios de informação, como jornais, revistas e sites, ter acesso a opiniões de críticos de arte, mas, ainda assim, isso não garante o desenvolvimento de uma “sensibilidade do olhar”.
Vivemos numa sociedade em que as pessoas se preocupam muito mais em “consumir” shows de pagode, musica sertaneja, funk e arrocha do que ir para um concerto de música clássica ou show de MPB num teatro, vai-se para os estádios de futebol e para shows em grandes espaços de arena, mas não se vai para os teatros assistir peças ou espetáculos de dança, prefere-se ir a cinemas assistir filmes enlatados norte-americanos, mas não se vai num cinema de arte assistir filmes nacionais ou estrangeiros de outras nacionalidades que não a norte-americana, gastasse tempo e dinheiro em academias e em procedimentos estéticos para se ficar “sarado” e “gostoso”, mas não se preocupa em observar a beleza do próprio corpo e do corpo alheio, com suas marcas, suas imperfeições e sua humanidade real.
Dificilmente teremos uma sociedade educada para a arte enquanto os valores dessa sociedade ainda mantenham os resquícios de uma moral cristã puritana, renovada pela onda conservadora evangélica, que demoniza o corpo associando-o a algo pecaminoso, sujo, pervertido, depravado e imoral.
Do mesmo modo, se, na ausência desses valores morais, impera os valores de consumo, em que as pessoas consomem e são consumidas, sem parar para refletir sobre si mesmas e sobre suas existências, e a relação com o corpo é apenas instrumental, preocupada com o emagrecimento e torneamento para fins de atrair sexualmente o outro ou para satisfazer o próprio narcisismo, esse e qualquer outro corpo será tomado apenas como objeto de uso e consumo, como corpo “pornográfico” que visa apenas a excitação, o sexo e o gozo imediato e descartável.
Seja pela ótica da moral que julga, seja pela ótica dos valores predatórios de consumo, a arte – e o corpo nu na arte - não poderá ser vista verdadeiramente como arte. Por mais que os artistas atores ou performers estejam disponíveis para o olhar ou para o toque, expostos e disponíveis para um encontro real e concreto que mexa com as sensibilidades, não haverá contato possível se o olhar estiver cego pelos preconceitos e se as mãos estiverem vestidas com luvas de boxe.
Nos falta uma educação para a arte que nos permita diferenciar um nu artístico de uma arte erótica, e esta da pornografia. Nos falta uma sensibilidade capaz de diferenciar o nu artístico do “nude” que se troca nas salas de bate-papo e pegação, nas redes sociais. Nos falta uma sensibilidade para diferenciar uma cena de arte erótica num filme, peça teatral ou performance, de uma cena de sexo explicito de um filme pornô disponível nos sites de pornografia.
Além disso, surpreendentemente, nos enfurecemos com a arte e nos excitamos com propagandas de cerveja, cosméticos e procedimentos estéticos que bombardeiam os canais de televisões, exibindo corpos bronzeados e torneados, esculpidos no photoshop e nas mesas de cirurgia plástica.
Não me surpreende a atitude dos moralistas que hipocritamente criticam a arte sem dela sequer se aproximar para um contato real e genuíno, para um “encontro com” o humano materializado no corpo do artista e da obra de arte. Fugimos dessa humanidade que a arte nos convida a defrontar em cada encontro, em cada desconforto, em casa sensação e emoção de estranhamento e angústia. Fugimos daquilo que antes, da Antiguidade à Idade Moderna, na arte se materializava como reflexo invertido de nossas imperfeições e fragilidades, de nosso desejo de eternidade sabendo-nos efêmeros e mortais. Se antes as artes nos alertavam para nossa condição humana demasiado humana, hoje nos entorpecemos com a ilusão da beleza e da juventude eternos, que nos faz caricaturas bizarras de nós mesmos.
Sinceramente, não sou otimista quanto a essa questão. Enquanto, tal como Adão e Eva, mantivermos uma atitude medrosa de ocultamento, vergonha e fuga de nossa própria nudez, evitando o confronto com o que ainda há de potente e divino na arte, não creio que sairemos de nossas cavernas de ignorância, de nossa cegueira cultural, e de nosso analfabetismo ético e estético.
Mergulhados em nossa ignorância truculenta, movidos por nossos julgamentos, guiados por nosso olhar pornográfico, estaremos cada vez mais distantes da atitude e do gesto da criança que toca o humano, com a curiosidade e abertura para o encontro real com a humanidade, que repousa no corpo nu de um artista ou de qualquer outro corpo, de homem ou mulher, verdadeiramente humano, disponível não para o sexo e para a pornografia, mas para o toque e o olhar, neutro, porém aberto e disponível para o contato e a exploração das possibilidades sensíveis de existir.