Hoje irei tratar de um assunto abordado de forma controversa no cotidiano, porém presente na vida de muitas pessoas que vivem fora dos padrões socialmente aceitos. A essa condição de “exceção” a regra, de desvio da norma ou simplesmente de contestação ao que está dado, chamarei de “condição marginal”. Certamente essa expressão não é de minha autoria, e envolve uma diversidade de sentidos e interpretações que tentarei, de algum modo, explorar nesse breve artigo.
Primeiramente, o que seria esse “ser marginal” ou esse “estar à margem”?
No sentido mais comum, empregado na linguagem coloquial, marginal é bandido, criminoso, delinquente. Utiliza-se o termo marginal para nomear pejorativamente todos aqueles que, de algum modo, estão em desacordo com a “lei”. Essa lei, no entanto, não se restringe apenas ao conjunto jurídico que define o que é ou não crime, mas também toda norma implícita que constitui as convenções sociais, todos os tabus e vetos, repressões e censuras aos quais submetemos as pessoas no convívio social.
Ampliando o conceito de lei também ampliamos o conceito de marginal, considerando todos aqueles que rompem com as convenções sociais, tabus, vetos, repressões e censuras, ou seja, o status quo imposto de forma explicita ou implícita na nossa vida cotidiana.
Marginal também é sinônimo de “transviado”, de todos os que saem da via única e segura, da grande avenida principal, e se envereda pelos caminhos alternativos, pelas vias paralelas, que percorrem atalhos, entra em becos ou abre caminhos no meio da floresta, aquele que é a ovelha desgarrada que foge do comportamento de bando e vai explorar novas possibilidades de vida, novos modos de constituição de si mesmo, adotando estilos de vida, hábitos e valores diferentes da maioria.
Considerando todas essas possibilidades de compreensão do termo marginal, falta ainda tratar da “condição” marginal. O que condiciona uma pessoa ou grupo ao lugar de marginalidade?
Certamente não é fácil encontrar uma pergunta única a essa pergunta, pois a condição marginal – ou as condições marginais – nem sempre é uma condição de escolha, mas uma disposição ou uma posição de certo modo posta pelo outro, a partir de sanções sociais que submetem toda diferença ou divergência à essa condição de exceção.
No primeiro significado de marginal como bandido, criminoso ou delinquente, há de se considerar o aspecto social e econômico associado às predisposições individuais de personalidade. Muitos se tornam marginais como forma de sobreviver “dentro” de um sistema que nos relegam à margem. Embora o caminho da criminalidade não seja, nem de longe, o melhor caminho, sendo um caminho arriscado e nem sempre fácil de sobreviver, é um modo de conseguir ter acesso aos meios econômicos que colocam o sujeito apto ao consumo, mesmo que esse consumo também seja ilícito, como é o caso das drogas.
Muitos entram na criminalidade como forma de conseguir dinheiro para se manter e à sua família, dadas as dificuldades de inserção no mercado de trabalho formal ou informal, seja porque, na condição de usuário de drogas ou dependente químico, o contato com o mundo marginal do tráfico de drogas o insere neste modo de vida também marginal, associando-o à criminalidade, seja pela venda quanto à manutenção do consumo.
Obviamente não devemos desconsiderar o papel da escolha individual quando a ir ou não, permanecer ou não nesse estilo de vida, porém, muitas vezes, já se nasce dentro desse contexto, ou se é inserido desde muito cedo e, embora não devamos cair num determinismo, não devemos desconsiderar a forte influência do contexto social da definição das possibilidades de escolha dos sujeitos. De todo o modo, esse tipo de condição de marginalidade é, certamente, a mais problemática de ser compreendida e solucionada como problema social, dados os reflexos diretos sobre toda a sociedade, principalmente quando associada à violência, seja ela infringida entre os próprios sujeitos marginais e marginalizados entre si e contra o restante da população, seja sofrida por eles pelas agências de repressão e pelos mecanismos de exclusão social.
Faz-se, no entanto, necessária uma reflexão sobre o lugar dessa violência, ela mesma, como reação contraria a um sistema discriminador e agressivo que segrega esses sujeitos tanto da educação, como do mercado de trabalho formal e de condições dignas de vida. A violência pode dar-se como forma agressiva de reapropriação do lugar social dentro de uma ordem de poder, instituído em paralelo ao poder socialmente estabelecido, como um antagonista aos mecanismos de repressão social aos quais os mais pobres estão submetidos.
Não irei me ater mais a esse tema, tendo em vista que haveriam muitos outros aspectos a serem tratados, incluindo uma reflexão acerca da criminalidade entre pessoas de classes sociais mais favorecidas e que, embora não estejam socialmente colocados à margem, optam pela vida criminosa, nisso incluindo os outros crimes não associados diretamente ao trafico de drogas, como estelionatos e os chamados crimes de colarinho branco que, de todo o modo, tem também bases tanto psicológicas quanto sociais como influenciadores.
Creio ser importante considerarmos também a questão da marginalidade na esfera da sexualidade, principalmente as que dizem respeito às questões de gênero e à orientação sexual, e, em especial à prostituição e às sexualidades trans.
Quanto à prostituição, ela partilha em grande parte do estigma de marginalidade referido à criminalidade. Em alguns casos é também uma alternativa de sobrevivência de homens, mulheres e travestis que, por algum motivo pessoal ou contextual, se viram nas ruas tendo como possibilidade de conseguir dinheiro a venda do próprio corpo para o sexo. Não podemos negar a existência, desde longas eras, de um complexo sistema, nem sempre ilegal, de exploração da prostituição, que nos remete, por exemplo, ao caso de Pompéia, da Roma antiga, em que a prostituição era legalizada e explorada pelo próprio Estado, constituindo-se, no entanto, como uma prática predominantemente realizada por escravos.
Hoje temos todo um sistema de exploração da prostituição via aplicativos e sites de internet, sites de pornografia, além de saunas e casas de show espalhados em toda parte do mundo. Recentemente a prostituição passou a ter no Brasil um pouco mais de visibilidade a partir de movimentos de luta pelo reconhecimento profissional da prática, com criação, inclusive, de sindicato e políticas públicas de saúde dirigidas a esse público. Durante muito tempo, no entanto, a prostituição figurou como crime ou doença, tal como a homossexualidade, sendo fortemente combatida e monitorada pelas agências de repressão do Estado. Ainda assim, ocupam uma condição marginal, por vezes pouco visível, dado o estigma social que relega a prática, ainda hoje, à clandestinidade – o que, provavelmente, não vá mudar tão cedo.
As motivações que levam à prostituição, no entanto, podem ser as mais diversas, mas certamente tem a ver com a própria questão da sexualidade. Sejam mulheres vitimas de abuso e exploração sexual desde cedo, ou, no caso dos homossexuais e transgêneros, a exclusão social por parte da família, devido à orientação sexual e de gênero, sem rede de apoio social que garantisse o acesso a educação ou inserção no mercado de trabalho formal, senão em trabalhos subalternos e de baixa qualificação profissional, ou ainda, à própria identificação com um estilo de vida em que o sexo é encarado tanto como via de prazer quanto como forma de ganhar dinheiro, sem cair propriamente na criminalidade ou na violência.
Independente das motivações, a própria condição de vida clandestina, mantem o sujeito que se prostitui em condição marginal, transgredindo em sua pratica sexual a moral e os bons costumes hipocritamente defendidos por pessoas que, na intimidade, muitas vezes, valem-se de seus serviços ou dos produtos da indústria da pornografia. Certamente não teríamos a prostituição como prática social tão amplamente difundida se não houvesse pessoas que dela se servissem para a satisfação de seus desejos e fantasias sexuais não permitidos pelas vias lícitas e convencionalmente estabelecidas socialmente.
Uma terceira condição marginal, dissociada da ideia de criminalidade, diz respeito aos transgressores dos “scripts” socialmente instituídos, como estilo de vida desejado, e que buscam viver novas possibilidades de vida e constituição de si. Nessa compreensão, podemos incluir todos aqueles que hoje ou no passado romperam dogmas e tabus sociais e lutaram por sua liberdade de ser e viver conforme seu próprio desejo e consciência. Nessa condição marginal se inclui todos os que ousam pensar “fora das caixinhas” de rótulos e roteiros e se aventuraram a ser vanguardistas de novos modos de pensar e viver.
Artistas, cientistas, livres pensadores, mentes criativas, nem sempre levados a sério, porém reconhecidos na posteridade por sua genialidade, se incluem nessa compreensão de marginal. Nela também se incluem todos os que, de algum modo, instituíram novos modos de vida, todos os negros que viveram e lutaram contra escravidão, o apartheid e o racismo e que transgrediram tabus sexuais, vivenciando relacionamentos inter-étnicos, todas as mulheres, feministas ou não, que lutaram pelo sufrágio feminino, pela inserção da mulher nos sistemas de educação formal e no mercado de trabalho em iguais condições com os homens, que lutaram pelo direito do livre dispor de seus corpos na reprodução e pelo direito ao orgasmo, contra a violência doméstica e o abuso sexual, todos os homossexuais que lutaram e lutam pelo reconhecimento do direito à união conjugal e reconhecimento da família homoparental, todos os que assumiram o divórcio como forma de reaver a liberdade perdida num casamento infeliz, buscando recomeçar novos vínculos amorosos e conjugais... Ou seja, todos aqueles que romperam e transgrediram leis e convenções sociais para garantir o exercício da sua liberdade e de tantos outros, lutando pelo direito de serem felizes vivendo de modo não convencional.
Certamente, os que melhor se identificam nessa categoria são os artistas de vanguarda, que rompem, através da arte e de suas próprias vidas, não apenas as regras e convenções estéticas, mas também os hábitos e costumes de seus tempos, propondo novos modos de viver e olhar o mundo de forma sensível, intuitiva ou racional, militante ou, simplesmente, escandalosamente autêntica. Também filósofos e livre pensadores ocupam bem esse lugar marginal quando propõem novas leituras de mundo a partir de novos modos de pensar a realidade e a racionalidade. Obviamente que todos eles se situam nessa condição marginal respondendo ao seu contexto e à cosmovisão de suas época, ao seu “Zeitgeist”, situados historicamente e historicamente se destacando para além dos limites de seu tempo.
Por fim, a título de conclusão desse artigo, gostaria de pontuar que a condição marginal não relega, necessariamente, o sujeito ao um lugar “fora” da sociedade, pelo contrário. Há lugar na sociedade para o marginal, permitido por essa mesma sociedade e, às vezes, sustentado por ela.
Sejam aqueles que vivem na ilegalidade e na invisibilidade, seja aqueles que afirmam seu lugar marginal através do escândalo ou da resistência e militância, buscando assumir sua parcela de protagonismo, ou ainda aqueles que simplesmente vivem segundo suas próprias consciências e desejos, todos estão no social, ocupando lugares “dentro” da sociedade, legítimos ou ilegítimos, legais ou ilegais, porém transitando pelos espaços sociais e deixando suas marcas, seus discursos ou suas ações que rompem com os tabus e convenções para forçar toda a sociedade a repensar seus a prioris, reformular conceitos e práticas e evoluir, de algum modo, no sentido da inclusão das diferenças.
Esse processo de assimilação do marginal quase sempre é marcado por grandes resistências e conflitos, mas já vivemos hoje as marcas desses embates em vários campos de nossas vidas, nas famílias, no mercado de trabalho, na cultura e nas artes. Certamente já não somos os mesmos, nem vivemos como os nossos pais e avós, pois o mundo mudou e continua mudando graças a todos os transgressores e marginais que, pelas bordas e pelos furos deixados nas rígidas fronteiras das convenções, permitiram a entrada do novo, do diferente e do diverso, no mundo, rompendo e destruindo barricadas para a construção de espaços abertos a novas construções e novos modos de convivência, mais próximos, talvez, de um ideal de liberdade.
Seja Marginal, Seja Herói - Hélio Oiticica (1968).
Fonte de Imagens:
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