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Foto do escritorAlan Rangel

O vazio da modernidade


As bases de uma sociedade democrática têm dispensado cada vez mais a tradição, a hierarquia, pressupostos da antiga cosmologia mítica e religiosa, que compreendia o mundo como coerente, bem ordenado e que não separava a realidade entre o espiritual e temporal. A democracia se funda numa ética humanista baseada no distanciamento radical de um poder transcendente. Houve grandes progressos morais na sociedade moderna? O avanço tecnológico, a organização política e econômica trouxe mais problemas ou soluções na vida social? Se uma dimensão ética-espiritual foi expulsa da vida social moderna, as leis erigidas em seu lugar conseguiram substituir essa dimensão ao ponto de homens e mulheres se integrarem plenamente a uma “espiritualidade laica”, calcada sobretudo no humanismo, na Democracia, nos valores liberais?


Pensadores e cientistas renascentistas ocidentais, por volta de fins do século XIV em diante, buscaram desconstruir, gradativamente, uma visão de mundo natural, de um Todo acabado e bem ordenado, calcada em uma hierarquia perfeita conduzida por Deus. De acordo com o filósofo contemporâneo francês Luc Ferry [1] os homens da época, cunhados em princípios da física moderna, ao contestarem a dissimetria natural, mostraram que o Universo é desordenado, caótico, fragmentado, sem sentido - e modificaram a visão ética sobre a forma de organizar a sociedade. Assim, era preciso pensar em outro parâmetro social. Se nada mais existe senão o que não existe, como diz Macbeth, na obra Shakespeare, é função do indivíduo pôr sentido ao mundo. É a razão que assume esse papel de coerência.


O substrato da racionalidade ganha relevância a qualquer concepção organicista, fechada de mundo. A ciência, a filosofia, a arte vão se basear na construção do antropocentrismo, o homem com centro do mundo. O poema abaixo, de John Donne (1572-1631) [2], retrata essa mudança.


Os homens confessam abertamente que este mundo acabou, quando nos planetas e no firmamento buscam novos mundos, eles veem que este esfaleceu-se até os átomos. Tudo se espedaçou completamente todo cuidado justo e toda relação; príncipe, súdito, pai, filho, são coisas esquecidas.


Essa concepção que coloca o homem como centro está politicamente ancorada, tardiamente, na Declaração dos Direitos do Homem, em 1789, na França, que desloca todo o pensamento antigo, que enxergava o mundo e a ordem como essencial e anterior aos mortais. Então a ideia de tradição, ou o arcabouço simbólico que constituía crenças, práticas e instituições hierárquicas baseadas, sobretudo, na transcendência, desmoronava para justificar os avanços da modernidade ocidental, desconstruindo, lentamente, uma visão mais comunitária.


Para Luc Ferry, ainda, no plano da política, algumas consequências foram imediatas, com o definhamento das ideias tradicionais: a ascensão da igualdade formal, do individualismo e a valorização do trabalho. Falarei rapidamente das duas primeiras consequências.


A igualdade formal supõe que, independente de os seres humanos terem talentos diferentes, não é possível identificar a virtude humana no lado natural/instintivo/animal da qual ele possui. Se a concepção organicista do mundo antigo e medieval foi, paulatinamente, desconstruída pela ciência moderna e pelos novos valores, que centra o indivíduo como capaz de agir de acordo com sua consciência, é só a razão que pode construir um novo pilar ético que coloca a liberdade, ou seja, a escolha como algo realmente superior. Liberdade como dignidade. Em outros termos, não é no instinto egoísta do ser humano que estão as virtudes, e, sim, na sua capacidade intelectiva do bom uso da razão a favor da harmonia e do progresso da humanidade.


Para a visão da época, não há lógica suficiente em manter uma sociedade de aristocracia natural, com referência às disposições naturais, se o ser humano pode saltar da Natureza e ser artífice da sua vida. Como dirá um filósofo francês no século XVIII, Jean Jacques Rousseau, o ser humano é apto para aperfeiçoar-se. Não está preso à natureza como os animais. O humano é capaz de criar sua própria essência. Este fundamento foi uma das bases para a igualdade e liberdade formal na Democracia.


O individualismo também parte dessa consequência. Na cosmologia cristã, Deus todo poderoso onisciente ordena e diviniza o mundo, portanto, há um telos que guia a humanidade; na concepção preponderante dos gregos, no mundo antigo, tudo era baseada em uma cosmologia aristocrática na qual os homens se encaixavam no Cosmo. A modernidade não vê mais sentido nessas concepções. Não há uma lógica racional em colocar o indivíduo em segundo plano.


O homem passa a ser um fim em si mesmo capaz de organizar a existência, a partir de uma ética puramente humana – fundamento último de todos os valores morais. Esta concepção é contrária a uma visão de mundo baseada em uma espécie de egoísmo - ético natural - que justificaria a existência de pessoas em posições privilegiadas na sociedade.


Com a secularização do mundo, há uma divisão entre o temporal e o espiritual. Religião e política se divorciaram, e esta última tomou o protagonismo da vida social. A transcendência que organizava a sociedade foi substituída pelos direitos individuais, transcrita nas Constituições ocidentais, que tem como base o ser humano como valor universal. O humanismo se transformou em uma espécie de religião laica, uma ética racional normatizadora e orientadora das condutas sociais nas sociedades democráticas. A sacralidade foi transferida para o humano sem nenhuma vestimenta social.


Quais as consequências mais visíveis dessa transformação? Várias. Mas vou destacar somente uma para meu argumento: a perda de uma conduta ética, com princípios ou símbolos hierárquicos que norteavam a vida em sociedade.


Os grandes regimes totalitários do século XX foram tentativas desastrosas, bárbaras, de dar uma nova transcendência ao mundo – biológica ou histórica – para além do humano. Em outros termos, os regimes buscavam erigir uma nova ordem mundial, um pós humanismo, colidindo com a igualdade e liberdade democrática liberal. O totalitarismo nazifascista e socialista buscava um reencantamento do mundo através de ideias que não dispensavam a violência, o caos, com mensagens de esperança e redenção para um mundo vazio e sem sentido. Sintomas de uma civilização dividida entre passado, presente e futuro.


Aprendemos com o século passado, que os valores enaltecidos pela modernidade nunca estarão plenamente seguros! Elas não são fontes últimas de organização social e política, por mais que muitos pensem dessa forma. A ética humanista, da qual ela está embasada, é extremamente frágil para orientar a vida social.


Parece evidente que a ética moderna criada pelo acordo racional entre os homens na conduta da vida em sociedade - uma espécie de contrato social imaginário- não tem evitado o ódio, a vingança, a destruição, as guerras, xenofobia, a intolerância, o racismo. É necessário pensar em uma ética pós - humanista, não nos moldes totalitaristas, mas numa concepção de mundo que integre humanos e não humanos, pensando em uma cosmologia mais ampla, que inclua uma dimensão mais integradora.


A questão que fica para reflexão: o humanismo, o individualismo, a equidade, a igualdade formal, o livre-mercado, a liberdade individual, calcados na Democracia liberal é mesmo o último estágio da humanidade? Provavelmente não, porque tudo é provisório. Por isso a importância da reflexão sobre o tema.


[1] FERRY, LUC. Aprender a viver. Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro Objetiva, 2010.

[2] Retirado do livro O mundo fora de prumo, transformação social e teoria política em Shakespeare, de José Garcez Ghirardi

[3] https://www.soteroprosa.com/single-post/2017/08/14/A-falta-e-a-busca-%C3%A9-comum-a-todos

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