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Foto do escritorEquipe Soteroprosa

A palavra e a memória social


Músico Tukulor, imagem retirada da obra "a Tradição Viva".

Das muitas partes que compõem a sociedade humana um dos elementos mais importantes sem dúvida é a memória, tomada especialmente em sua acepção mais completa, enquanto perpetuadora da cultura. Isso significa que para além de representar a experiência particular dos indivíduos, a memória traz consigo a força da cultura de um povo, suas tradições, sua compreensão de mundo, a teia de relações entre os sujeitos, em resumo: a memória social.


Toda memória coletiva é social, portanto, explicita os valores culturais de uma determinada sociedade. A história seria a transmissão da memória ao longo dos séculos, uma perpetuação da espécie humana para além de sua forma física. A palavra seria o instrumento por excelência da transmissão desse conhecimento histórico e dos valores relevantes para cada sociedade. Em meu artigo mais recente “A palavra, a política e a reinvenção do espaço público”, enfatizei a importância da palavra como ferramenta política de poder e do seu valor intrínseco enquanto potencializadora das capacidades humanas, através do pensamento grego clássico. No presente artigo, gostaria de avalia-la sobre uma perspectiva diferente: sua potência enquanto agente ativo da memória de um povo e como pode ser grave socialmente desconsiderar essa potência.


Gostaria de iniciar minha breve incursão tomando como ponto de partida um texto célebre, “A Tradição Viva”, do escritor malinês Amadou Hampâté Bâ. Na obra em questão o autor investigou a cultura africana da região subsaariana através da tradição oral, considerada por ele a forma mais definidora do espírito dos povos africanos no que se referia à transmissão do conhecimento.


Por muito tempo a noção de História esteve vinculada ao legado material, ou seja, aos registros que nossos antepassados nos deixaram e a escrita por definição assumiu o papel de guardiã da história dos povos. As sociedades ágrafas por muito tempo foram consideradas a-históricas; Hegel em seu famoso ensaio sobre a filosofia da história afirmou que a África não tinha história, pois sociedades destituídas de um Estado (nos moldes da razão europeia) e sem uma cultura escrita eram desprovidas de História. O filósofo alemão não foi o único a sustentar ideias desse tipo, muitos intelectuais ocidentais negaram o status de civilização e cultura aos povos de tradição oral (não apenas os africanos), onde a oralidade sobrepunha-se à escrita.


Essa valoração relaciona-se diretamente com a concepção (por vezes errônea) de que o relato oral é menos fidedigno enquanto fonte do que o texto escrito; Hampâté Bâ de forma lúcida afirma: “O testemunho, seja escrito ou oral, no fim não é mais que testemunho humano, e vale o que vale o homem [...] Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como lhe foram narrados ou, no caso de experiência própria, tal como ele mesmo os narra”. A fonte oral está sujeita aos questionamentos da mesma forma que a fonte escrita, pois se o testemunho narrado está sujeito às paixões e impressões daquele que o profere, o texto também o está, além das possibilidades de deturpação do documento em si. Isso não significa que ambas as formas de transmissão de conhecimento são invalidadas, somente nos aponta para o fato incontornável de que todo o testemunho humano, seja qual for a sua natureza, submete-se ao crivo da análise crítica ao mesmo tempo que traz de maneira latente um registro vivo da memória de quem o produziu, à revelia da intencionalidade de seu autor.


Numa sociedade onde a oralidade tem precedência sobre a escrita o valor do indivíduo está ligado diretamente à palavra. O homem é aquilo que diz. Nas sociedades africanas da savana ao sul do Saara, estudadas por Hampâté Bâ, a palavra reveste-se não apenas de um valor moral, mas também de uma força divina. No Mali, uma dessas tradições é o Komo, que ensina que uma das forças fundamentais do universo é a Palavra (Kuma), que emana diretamente do Ser Supremo (chamado no idioma bambara[1] de Maa Ngala). O Criador deu vida ao homem, que recebeu parte do seu nome, “Maa”, e que recebeu também a dádiva da Palavra e da Mente. Maa Ngala instruiu o homem com as leis do cosmo e designou o homem como o seu guardião e interlocutor, por conseguinte, lhe atribuiu a responsabilidade de conservar a harmonia do universo e transmitir seus conhecimentos. Vemos então que a Palavra é uma herança imbuída do aspecto divino, quando tornadas corpóreas pelo contato com o homem diminuem um pouco essa aura de divindade, mas não perdem a sua sacralidade e constituem um elo contínuo com o Ser Supremo. Nas palavras de Hampâté Bâ: “A tradição africana, portanto concebe a fala como um dom de Deus. Ela é ao mesmo tempo divina no sentido descendente e sagrada no sentido ascendente”.


A fala humana ocupa um papel central nessas sociedades africanas, pois reúne as potencialidades do poder, do querer e do saber, que representam as forças da natureza e materializam-se através da fala. Se a palavra reúne e movimenta essas forças ela consequentemente tem o poder de criação e destruição, por isso a fala também funciona como o agente ativo mais importante da magia africana. Se o universo é compreendido como forças em movimento contínuo, os homens dotados com o conhecimento e uso da fala são capazes de modificar o equilíbrio do cosmos, portanto o ofício dos mestres do conhecimento tem um papel de suma importância na preservação da ordem social e cósmica na cultura africana.


O escritor malinês aponta que dentro dessa tradição a fala tem o poder de conservação ou ruptura da harmonia do homem consigo mesmo e com o mundo no qual está envolto; por isso, a mentira constitui nessas sociedades um crime de natureza moral que atenta contra a coesão de toda a estrutura da sociedade. O indivíduo que mente não ameaça apenas ao corpo social, ele corrompe a sua própria essência divina, pois Maa é o resultado do sopro sagrado de Maa Ngala, a mentira aniquila-o também enquanto membro da sociedade civil, torna-o um pária; a morte espiritual é pior do que a morte física, para os seus pares, o mentiroso já está morto enquanto parte da criação divina. Reproduzo aqui um chantre de uma das tradições malinesas, para dar ao leitor uma dimensão mais clara dessa percepção acerca da mentira e a corrupção perpetrada pela mesma:


“A fala é divinamente exata,

convém ser exato para com ela.”

“A língua que falsifica a palavra

vicia o sangue daquele que mente.”

“Aquele que corrompe sua palavra, corrompe a si próprio” [adágio africano]


O ofício dos mestres tradicionalistas se constitui numa cadeia de transmissão oral dos costumes, por isso a mentira corrói aquilo que existe de mais basilar nessas sociedades, a memória. Na concepção africana tradicionalista aqui abordada, o mundo é um lugar de imanência divina e mágico, logo, a fidelidade do homem ao relato que ele transmite tem uma relevância incontestável. A partir dessa análise, percebe-se que esses povos africanos tem a sua base estrutural erigida por meio da Palavra, considerado o elemento de articulação entre os homens e destes com o universo. Onde a Palavra tem prestígio, a construção da memória coletiva torna-se uma ferramenta imprescindível para a coesão social; a história desse povo só pode ser compreendida em sua totalidade, o que abrange todos os aspectos da existência.


Iniciei esse artigo abordando a questão da construção da memória social e sua importância para a compreensão dos valores de uma sociedade. Minha escolha pelo texto do Hampâté Bá partiu do meu interesse em ilustrar uma organização social baseada na veracidade do testemunho humano em sua forma oral, para então analisar a relevância do discurso que se produz em nossa sociedade e como elaboração do mesmo incorreria em muitas situações que justificariam ações incorretas. Desconsiderar o uso da palavra enquanto construtora da memória social pode incorrer no mau uso da mesma e numa consequente legitimação dos atos mais atrozes contra a humanidade. A conexão entre a palavra e a memória de um povo produzem os discursos que permeiam cada parte do corpo social e portanto, a nossa própria noção de verdade está sujeita às mutações do discurso ao longo da história. Em pior instância, os indivíduos produzem falas que lhe são convenientes e deturpam a memória coletiva em prol de objetivos escusos.


A escrita suplantou a tradição oral em muitas sociedades modernas, o que não significa que não podemos aprender com a diferença, o outro. Compreender essas sociedades de tradição oral pode nos conduzir a uma compreensão melhor da importância que damos à nossa construção da memória coletiva e dos usos que damos aos discursos, seja na esfera política ou social. Muitas foram as vezes que observamos o mau uso da Palavra, essa força inerente da razão humana, para a proliferação de discursos de ódio, práticas de intolerância, o desrespeito aos direitos humanos fundamentais, a defesa de ideias políticas retrógradas, tudo isso apoiado em uma memória coletiva construída por meio de mentiras ou deturpações de valores que consideramos fundamentais. O conhecimento histórico servindo de substrato às justificações ideológicas das mais variadas vertentes (e por vezes da pior espécie) é um exemplo contemporâneo de como a memória social é solapada por interesses pouco afeitos à realidade dos fatos.


Nos últimos tempos tornou-se comum manifestações públicas em diversos países de xenofobia, racismo, discriminação de gênero e afins. Nenhum discurso de cunho coletivo surge sem fundamentar-se em algum tipo de formação cultural resultante de uma memória coletiva sobre a história de um povo, das transformações nas relações sociais entre indivíduos do mesmo espaço geográfico durante os anos; portanto, existe uma apropriação seletiva da memória social que justificaria a discriminação. Se para os africanos estudados por Hampâté Bá o mau uso da palavra (que associei aqui ao discurso) separa o homem de si mesmo e do corpo social, parece acontecer o inverso com outras sociedades não tradicionais, onde o mau uso da palavra aproxima indivíduos em prol de causas especificas. Teríamos então destituído a palavra da “verdade” e a feito de refém da mentira? O que seria essa mentira? Se para os tradicionalistas da transmissão oral a mentira era corrupção da sociedade, talvez em nosso caso ela tenha se transformado em instrumento de convencimento das massas.



Pessoalmente, não acredito que a palavra tenha se reduzido a esse uso mesquinho, de subversão da memória coletiva em prol de interesses políticos, religiosos ou étnicos de caráter duvidoso; todavia precisamos ao menos repensar a importância que damos à memória enquanto repositória do conhecimento adquirido ao longo dos séculos. E se temos o desejo de aprender sobre o outro para escaparmos das amarras da ignorância e do preconceito, sigamos o conselho de um sábio iniciado nas tradições orais africanas:


“Se queres saber quem sou,

Se queres que te ensine o que sei,

Deixa um pouco de ser o que tu és

E esquece o que saber”.


REFERÊNCIA:

HAMPATÉ BÂ, Hamadou – A tradição viva, em História Geral da África I. Metodologia e pré-história da África. Organizado por Joseph Ki-Zerbo. São Paulo, Ed. Ática/UNESCO, 1980, pp.181-218.



[1] Um dos idiomas falados no Mali.

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