Checkmate, Renè Magritte (1926).
Dando continuidade ao artigo do ultimo domingo, conforme prometi, irei tratar hoje de um tema mais que polêmico, no que diz respeito à saúde mental: o suicídio. Para isso irei fazer um recorte um tanto quanto arbitrário, mas que me pareceu ser uma abordagem possível do tema. Optei, pois, por uma perspectiva que leva em consideração o fator faixa etária, considerando que, para cada momento da vida, haveriam situações especificas que, em ocorrendo, pode vir a desencadear o pensamento de morte e o desejo de se matar.
Parto do principio que o desejo de morte e o ato de suicídio pode ocorrer em qualquer fase da vida consciente, desde a infância até a velhice, sendo diversos os motivos que levariam alguém a cometer esse ato. Além disso, é importante considerar que o suicídio pode estar ou não associado a algum quadro patológico grave, seja de ordem psicologia e emocional, seja adoecimento físico, podendo ocorrer também em pessoas em pelo gozo da consciência, em pleno uso de usas faculdade mentais, embora nunca possamos desconsiderar a presença de aspecto emocional associado a eventos atuais ou passados como desencadeador.
Primeiramente, vamos abordar o suicídio na infância e adolescência. Suicídio na infância? Sim! É possível de acontecer, embora nem sempre seja fácil levantar suspeita sobre as causas do suicídio na infância, podendo passar como mero “acidente” ou fatalidade.
Essa fase da vida é marcada fortemente pela influência dos contextos familiar e escolar, que interferem diretamente no desenvolvimento emocional e na construção da personalidade, principalmente via processos de introjeção, aprendizado e assimilação de comportamento e crenças apreendidos na relação com o meio. Na família, devemos considerar principalmente a qualidade do vinculo afetivo dos pais entre si e em relação à criança. O fato de a criança ter nascido de uma gravidez desejada e planejada ou não pode interferir na qualidade desse vinculo e afeto. Seria o que popularmente chamamos de “família estruturada”. Uma família estruturada, pensando em termos ideais, seria uma família em que houvesse poucos conflitos conjugais que envolvessem ou repercutissem sobre a criança, ou seja um contexto seguro de atenção, amor e cuidado. Nesse contexto, provavelmente, o risco de adoecimento emocional seja menor e, com isso, menor o risco de desenvolvimento de quadros agressivos, ansiosos ou depressivos que levem ao suicídio.
Em um contexto inseguro, ao contrário, marcado por negligência parental, de abandono ou violência física, psicológica ou sexual, aumentam as chances de desenvolvimento de quadros de adoecimento mental na infância ou que possa vir a interferir negativamente na estruturação psíquica da criança, de modo a se manifestar como uma fragilidade posteriormente, na adolescência ou na vida adulta.
Não creio, no entanto, que haja uma formula ou um contexto familiar ideal ou perfeito, em que haja uma total blindagem das crianças quanto ao envolvimento em eventuais conflitos parentais, porém tenho a crença, de certo modo partilhada entre os profissionais de saúde mental, de que a criança, em geral, ao adoecer psíquica e emocionalmente, o faz como sintoma ou resposta ao contexto imediato a sua volta. O primeiro contexto de desenvolvimento da criança, na primeira infância, é a família, logo, se a família é saudável, permite a expressão das emoções, favorece a comunicação aberta e não há nenhum tipo de negligência ou abuso, maiores as chances de essa criança se desenvolver de maneira saudável.
O contexto escolar, no entanto, que é o segundo contexto mais importante para o desenvolvimento emocional, da personalidade e da socialização, tende a ser mais difícil ainda de se ter sobre controle. Na escola se dá as primeiras imersões da criança num ambiente de interações sociais e subjetivas, por vezes caóticas e imprevisíveis, mas que envolve principalmente o contato com a diferença.
Cada criança carrega em si parte de seu mundo privado, familiar e doméstico, hábitos aprendidos na observação do comportamento dos adultos, podendo vir a reproduzi-los no ambiente escolar. Além disso, há uma natural falta de censura na criança, ainda em processo de socialização e que só vai se consolidar definitivamente no final da adolescência e na idade adulta. Por mais que idealizemos a criança como um ser puro e inocente, em algum momento ela pode vir a manifestar ou reproduzir comportamentos emocionais de agressividade ou violência contra outra criança, fruto do lidar com os estressores da interação direta ou como reprodução da agressividade ou violência vividas nos lares.
Uma das formas mais marcantes de agressividade e violência na infância é o famoso “bullying”, que pode se dar das mais diversas formas, mas que, em geral, está relacionado a demarcações das diferenças, pela simples diferenciação e discriminação da outra criança por aspectos físicos ou comportamentais sociais, ou ainda decorrentes de diferenças étnicas, religiosas, sexuais ou de gênero.
O “bullying” pode se dar tanto na infância, quanto na adolescência, e impacta principalmente no desenvolvimento emocional e afetivo relacionado à autoimagem, autoestima e à aceitação social e engajamento em grupos. Quando o “bullying” se dá e não é percebido pelos pais e professores, não sendo devidamente identificado e tratado precocemente, pode se manifestar em comportamentos de progressivo isolamento da criança ou adolescente, que submetido a agressões verbais ou físicas, pode se sentir rejeitado e humilhado, e, sem condições de reagir de forma assertiva contra essa violência entre seus pares, pode direcionar contra si a agressividade, na forma de autoagressão.
Temos então o progressivo adoecimento emocional da criança ou adolescente vitimas de rejeição, violência ou exclusão social, que, deprimindo e como forma de evadir do contexto agressor, ou evita a escola e se isola, ou se auto agride, buscando no suicídio uma possível saída do seu sofrimento.
Considerando que essa fase da vida ainda é de fragilidade da constituição egóica e da personalidade, os riscos não são pequenos, e o ato suicida tende a ser movido mais por impulso movido pelas emoções, embora não signifique que não possa ser gestado por longo tempo, quanto e quando estiver submetido a situações que lhe cause sofrimento.
É importante destacar, ainda nessa fase, o impacto, principalmente, do “bullying” relacionado à orientação sexual e de gênero, acometendo muitos jovens que manifestam desde cedo tendências homossexuais, seja no desejo homoerótico, seja na construção de identidade de gênero identificado com o sexo oposto, transexual ou transgênero. Estes, muitas vezes, sofrem preconceito e violência tanto nos lares quanto, na escola, em outros contextos sociais e comunitários e pela sociedade como um todo, sem encontrar muito suporte externo para lidar com a violência associada à homofobia e à intolerância, às vezes consolidada por preceitos religiosos, de pais e professores.
Em síntese, temos que tanto na infância quanto na adolescência, o fator violência física, psicológica ou sexual e a exclusão social decorrente de fatores sociais, étnicos, religiosos, sexuais ou de gênero, podem vir a desencadear o desejo de dar cabo da própria vida, como estratégia autoagressiva de escapar de um contexto agressor, invasivo e desestruturador da personalidade e da autoestima.
Na adolescência, particularmente, se iniciam também as primeiras experiências amorosas e sexuais, não sendo incomuns ocorrências de tentativas de suicídio decorrentes de frustração amorosa platônica ou de términos de relacionamentos passageiros.
Esse tipo de suicídio, ou de tentativa de suicídio, que tem um caráter mais impulsivo e passional. Esses eventos podem ocorrer tanto na adolescência como na vida adulta, estando associados a perfis de personalidade dependentes ou que apresentem algum tipo de fragilidade psíquica maior, principalmente no lidar com situações de frustrações ou rejeições no campo afetivo e amoroso.
Somado a isso, podemos encontrar a ideação suicida no contexto de relacionamentos amorosos e sexuais abusivos, em que um dos parceiros submete o outro a algum tipo de relação violenta física ou psicológica, de humilhação, que levam a uma progressiva deterioração da autoestima do outro. EM resposta a essas violências, este pode, assim como a criança ou adolescente, submeter-se a autoagressão, ou buscar no suicídio uma saída ou alivio do sofrimento. Esse tipo de suicídio pode se dar principalmente em mulheres vitimas de parceiros violentos e abusivos. (Não podendo desconsiderar ainda os eventos de crime passional em que, o agressor além de dar cabo da parceira, pode agredir outras pessoas e ainda comete suicídio para fugir da pena da agressão cometida).
Na fase adulta, além dos já referidos de adoecimento e sofrimento psíquico derivados das primeiras relações afetivas e de experiências traumáticas vividas na infância e na adolescência, no contexto familiar, escolar ou nas primeiras relações afetivas sexuais, temos ainda um novo elemento a ser considerado: o contexto do trabalho.
Vivemos numa sociedade cada vez mais exigente de sucesso e fama. Muitos que não conseguem alcançar esse patamar de realização social e material, podem vir a desesperar e deprimir, pelo sentimento de frustração por não alcançar o padrão de sucesso, que diga-se de passagem, é bem distante da realidade da maioria da sociedade. Situações de perda de emprego e de dificuldade de inserção ou reinserção no mercado de trabalho, em ocupações consideradas dignas e adequadas às ambições e projetos de sucesso, ou necessária para a manutenção de certo estilo de vida de norteado pelo consumo, pode ser fator de adoecimento e de risco ao suicídio, principalmente entre os homens.
Como vivemos em uma sociedade de consumo que transformou o sucesso econômico em sinômino de realização e felicidade, e dada a cobrança ainda hoje de o homem assumir o papel de provedor e da família (embora na prática esteja dividindo esse papel e espaço com as mulheres), situações da falência ou desemprego, ainda mais em contextos de crise econômica que vivemos nos últimos anos, podem vir a ser fator importante de causa de suicídio nesse grupo de adultos.
Além disso, o contexto do mundo do trabalho, cada vez mais agressivo e competitivo, com episódios cada dia mais constantes de exploração e assédio moral e sexual, podem também atuar como fatores de risco de desenvolvimento de quadros de adoecimento mental relacionado ao trabalho, com repercussões igualmente importantes para a autoestima e autoimagem do adulto, podendo levar a quadros graves de depressão e ideação suicida.
Creio ser interessante pontuar que esses eventos ocorridos no contexto do trabalho guardam grande semelhança com os eventos de “bullying” presentes na infância e adolescência, agravados apenas pela questão de que, nesse caso, há uma dependência econômica ligada a empregabilidade, que faz com que muitos se submetam a esse tipo de humilhação e sofrimento, por receio de perder o emprego. A médio prazo, a permanência nesses contextos tem repercussões graves para a autoestima, a identidade pessoal e profissional, com impactos em outros contextos sociais, como a convivência com a família e amigos, dado o progressivo isolamento do individuo submetido a assédio.
Chegando, por fim, ao período da terceira idade, temos dois fatores a serem considerados: o envelhecimento e o adoecimento. Primeiro o envelhecimento, que interfere muito na autoimagem e autoestima, principalmente daquelas pessoas que na juventude tiveram uma vida ativa ou se preocuparam muito com a saúde e a aparência.
A perda do vigor físico e a percepção de limites para a realização de tarefas que antes executava facilmente, assim como o desligamento dos vínculos de trabalho, podem ser fatores desencadeadores de depressão.
Além disso, da perda da libido e da atratividade sexual, tanto em homens quanto em mulheres, podem levar, por exemplo, a términos de relacionamentos longos ou traições, impactando enormemente a autoestima daquele que vê sozinho, abandonado ou impotente diante da rejeição do parceiro, muitas vezes sem muitas expectativas de vir a recomeçar um novo relacionamento, caindo na solidão, no isolamento e, algumas vezes, no alcoolismo ou na hipocondria, adotando atitudes que levam à lenta e progressiva autodestruição.
Associado a isso, temos também, com o envelhecimento, a progressiva redução da rede social de apoio, seja pela saída dos filhos de casa, seja pelo distanciamento ou morte de amigos e parentes próximos.
Por último, porém não menos importante, temos o adoecimento incapacitante, que pode vir na velhice, mas também pode acometer a pessoa em qualquer fase da vida e se estender de forma crônica, com restrições decorrentes, por exemplo, de acidentes ou doenças mutiladoras. Muitas pessoas que padecem de adoecimento incapacitante ou degenerativo ou ou de dores crônicas podem vir a apresentar ideação suicida, considerando a morte como uma forma de tirar e aliviar definitivamente o sofrimento decorrente do luto pela perda da autoimagem e por ver-se dependente de um outro, nem sempre disponível, compreensivo e atencioso. A condição de dependência de cuidados de outros podem vir a desencadear conflitos contínuos ou a depressão do humor devido ao sentimento de fracasso e decadência.
Em síntese, podemos perceber, a partir desse panorama geral sobre as possíveis motivações para o suicídio, ao longo das diversas fases de vida e desenvolvimento da pessoa, que a abordagem do suicídio é algo complexo, dada a complexidade do próprio fenômeno, em função da multiplicidade de fatores e manifestações ao longos das da vida e os impactos desses fatores durando o processo de maturação física e psíquica. Apesar desse amplo leque de situações externas, não podemos desconsiderar os fatores estritamente psicológicos, relacionados à estruturação da personalidade e ao modo como cada um lida com experiências traumáticas de perda, frustração, fracasso, violência, adoecimento e luto.
Tamanha complexidade também demanda uma abordagem complexa, atenta às singularidades, à história de vida de cada pessoa. É importantíssimo quebrarmos os tabus e mitos que renegam o tema do suicídio e do sofrimento humano em geral ao lugar de ocultamento e silenciamento, pelo medo de, em se falar sobre o tema, dar motivos e coragem a suicidas em potencial virem a dar cabo das próprias vidas.
Além disso, é imprescindível combatermos a banalização do tratamento dado ao suicida, culpabilizando-o por seu ato desesperado, reduzindo-o a meras “tentativas de chamar a atenção”. Que em alguns casos é, de fato, uma tentativa de chamar a atenção, não podemos negar. Mas é uma tentativa de chamar a atenção de que? Do sofrimento? Da angústia? Da violência física e psicológica? Da rejeição? Da humilhação? Do desconforto que faz a alma sofrer e adoecer cronicamente ao ponto de colapsar todas as defesas e tentativas de manter a integridade e autonomia, fazendo ver na morte a única forma de silenciar a dor, o vazio e o desespero?
A rejeição ao suicida talvez venha desde a Antiguidade ou a Idade Média, quando o suicídio passou a ser considerado pecado mortal e sem absolvição, por ir de encontro aos princípios da vida e da criação e aos desígnios de Deus. Porém os tempos são outros, e já temos informações e maturidade suficiente na compreensão das motivações do comportamento humano que nos permite ver o suicídio não apenas como um ato narcisista e egoísta, mas como um sintoma de um campo de relações adoecidas e adoecedoras, frágeis ou fragilizadas, que começam na infância, atravessa a adolescência e chega à idade adulta, que perpassa a cultura do sucesso, do consumo, da beleza, da juventude e do sexo, e tropeça na realidade inexorável do adoecimento e da velhice.
O suicídio não é apenas uma expressão romântica do “mal do século”, de um espírito passional, nem apenas um ato totalmente frio, racional e premeditado de um niilista radical desiludido da vida e do mundo, que dá cabo de si mesmo num ato corajoso e heroico de liberdade ou revolta contra todo o sistema que o oprime. O suicídio é sim uma escolha, mas uma escolha radical, que traz em si o desejo desesperado de alcançar a paz necessária para acalmar as dores do corpo e da alma.
O que fazer diante do risco do suicídio? De forma simplificada digo: estar atento aos sinais. Aos sinais de isolamento, de evitação e fugado contato, de agressividade direcionada ao mundo mas, principalmente a si. Estar atento aos sinais que vem dos gestos, da fala, do olhar, da postura corporal e, principalmente, às tentativas frustradas da dar fim à vida. Uma vez praticada uma tentativa de autoagressão ou de suicídio, o risco de vir a se repetir em graus cada vez maiores de violência e destrutividade é maior. Estar atento, à escuta, de coração aberto e disponível a acolher o sofrimento do outro, sem julgamento, mas respeito, sem respostas prontas e fáceis, mas reconhecendo a complexidade das questões trazidas por aquele que sofre e busca, de algum jeito, o alívio da dor e a paz.
"Los romñanticos" ou "Sátira del suicidio romântico",
Leonardo Alenza e Nieto, 1839