A política por definição se faz no espaço público. É o âmbito no qual os indivíduos realizam suas disputas, definem os rumos dos interesses de relevância social que afetam a vida em comunidade. Aristóteles escreveu que “o homem é por natureza um animal social”, apontando suas características de um ser gregário e definiu a cidade como a formação social ideal para o exercício dos atributos políticos dos homens, a Polis grega. Dentro da polis, a Ágora seria o espaço por excelência onde os indivíduos exerciam o dom natural dos animais sociais, “dotados da fala” e por conseguinte, detentores da Palavra, esse elemento transformador da vida em comunidade.
Nos tempos modernos a nossa Ágora está difusa, não se restringe às praças ou mercados de uma urbe, como fora entre os gregos antigos, tampouco aos parlamentos modernos onde se reúnem os representantes do povo, como poderiam supor alguns. O nosso espaço público para o debate de questões relevantes para a sociedade não tem uma forma única, muito menos encontra-se em um local exclusivo. Será então que vivemos uma nova era do espaço público, onde o mesmo se diluiu em meio as inúmeras esferas do interesse privado, transformando a política em uma extensão das mesmas? Teria a nossa política, perdido a dimensão essencial do debate público? Nosso espaço público reduziu-se ao simples local do exercício de nossas vidas privadas e a política recolheu-se para o âmbito particularista?
Intrigado por essas e outras perguntas, recordei-me do fascinante estudo do historiador Jean Pierre Vernant sobre a origem do pensamento grego e como este adquiriu contornos específicos dentro da perspectiva da polis grega, com o gradual abandono da cosmogonia mítico-religiosa para uma visão racional do homem e do mundo. Gostaria de partilhar com o leitor minha breve incursão histórica e tentativa de elucidar as questões que me fiz, através do belo estudo de Vernant.
A gênese do pensamento grego esteve conectada a um elemento fundamental: a formação social da Polis. A estrutura socioeconômica que antecedeu ao modelo clássico da polis possuía uma dinâmica social distinta, centralizada em torno dos palácios, a realeza micênica, donde a figura do rei concentrava as funções religiosas, políticas e administrativas, um âmbito fechado. A centralização palaciana inclusive distinguia os homens pela sua ligação com a terra, seu grupo social, se guerreiro ou agricultor; a comunidade era uma extensão da família. O pensamento religioso dava o substrato da organização da sociedade, pois o universo do mítico/religioso estava presente na teia das relações políticas e sociais da civilização micênica. Essa parte do passado grego, conectado ao Oriente Próximo, ao romper gradualmente os seus laços com essa origem, transmutou-se em algo inédito e definidor para a história Ocidental.
A visão de mundo calcada no mito e na mentalidade religiosa, aos poucos deu lugar à razão, marcando a ascensão de um novo homem grego, com um olhar direcionado para si, que rompeu com o passado e separou o mundo humano do divino; esse foi o traço fundamental da nova civilização grega. Nas palavras de Vernant “uma distância insuperável se estabeleceu entre os homens e os deuses”. As transformações na cultura acompanham simultaneamente as mudanças materiais; a derrocada do sistema palaciano põe em oposição comunidades aldeãs e aristocracias guerreiras, que em meio aos conflitos de ordem moral, religiosa e material, cada vez mais originaram uma reflexão sobre o mundo dos homens e as possíveis formas de harmonizá-lo. A sabedoria nascente teve como objeto o universo humano e não mais o universo da natureza, a physis.
Aristóteles evidenciou na Política que o corpo social é composto por várias partes ordenadas na polis. A política foi o meio pelo qual os homens ordenaram o seu universo, os conflitos outrora definidos por meios de embates diretos passaram a dispor de um novo local e nova arma: uma disputa retórica cujo palco era a Ágora, a praça pública, o espaço onde os homens tornavam-se aquilo que os distinguiam dos outros animais, por serem sociais e dotados da palavra. Nesse espaço dominado pelo discurso os indivíduos tornavam-se iguais, a esfera privada dos clãs dava lugar para a esfera pública onde se discutiam os assuntos relevantes da cidade. No espaço público da polis grega nascia o cidadão.
Na polis a palavra deu forma à vida social, o homem-cidadão adquiriu o poder sobre o elemento divino, a persuasão, personificação da Peithó, sendo a palavra ferramenta humana e não mais dos deuses. Segundo Vernant “o que implica o sistema da polis é primeiramente uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos do poder. Tornar-se o instrumento político por excelência, a chave de toda a autoridade no Estado, o meio de comando e de domínio sobre outrem”. Com o advento da polis o homem conquistou não apenas o espaço público mais o mundo que o cercava, assumiu as rédeas da sua existência e capaz de moldar o espaço social. Que espaço seria esse? Se o indivíduo era cidadão na Ágora, apenas ali o que era verdadeiramente relevante para a vida em comunidade acontecia, ser cidadão era tornar-se verdadeiramente humano em suas plenas capacidades, usar da Razão.
O homem da polis poderia almejar a verdade, no passado mítico privilégio dos deuses, porém munido pelo poder inquebrantável da palavra, seus horizontes se expandiram. No mundo das leis, o poder privado submete-se ao poder dos homens públicos, pois na escrita materializa o poder de Peithó. A Sabedoria estaria ao alcance do homem, claro que não sem o árduo esforço de buscar a verdade por meio da filosofia, contudo, no domínio humano. O papel do filósofo era o de um homem essencialmente político, pois o saber encontrava-se realizado no espaço público da Ágora.
A polis fundou-se na igualdade entre os homens, heterogêneos por natureza, todavia semelhantes enquanto membros da vida ativa da cidade. Dois conceitos fundamentais se destacam: hómoioi e isonomia. O primeiro indica a condição necessária do homem que o identifica com seus pares, a “semelhança”, similaridade não anula o heterogêneo, respeitando os indivíduos em suas mais diversas origens, apenas os aproxima enquanto membros de um mesmo corpo social. O segundo conceito, isonomia (a igualdade) consolidava os cidadãos enquanto uma Unidade; na polis grega a isonomia não igualava os homens em sua condição individual, mas em sua condição enquanto membros de uma coletividade. Define-se assim um mundo concêntrico: cada cidadão é uma esfera, um micro-cosmos, um mundo independente e autônomo dentro de um grande cosmos, a Polis.
Em minha breve incursão histórica (com o apoio imprescindível de Vernant) procurei desvelar talvez o maior poder que o homem grego teve: operar intelectualmente sobre o mundo, tanto a physis quanto o cosmos humano. O que a razão humana acessa ela desmistifica, e o universo dos homens foi desnudado pela política.
A partir desses pressupostos apresentados tentei responder às perguntas formuladas anteriormente, elucidá-las na medida do que me foi possível. Voltemos a elas.
A política na democracia representativa moderna parece concatenar interesses privados, dos mais diversos setores, de movimentos sociais com bandeiras específicas a grandes corporações. Como definir o que representa o interesse público? Cada grupo defenderá que suas demandas atendem às necessidades sociais e que representam um interesse maior, porém não é o que observamos. Quantas dessas pautas foram construídas pensadas pela perspectiva do espaço público e não dos redutos corporativos ou partidários? Nesse ínterim fica difícil distinguir pautas que não representem a extensão do particularismo travestido de demandas sociais. Ao questionar acerca de quais pautas são legitimamente frutos do debate público, o faço não porque advogo um retorno aos moldes da polis grega ou por achar ilegítimo que interesses privados sejam defendidos na esfera pública, pois tal ato seria no mínimo anacrônico (o pecado mortal do historiador). O objetivo aqui proposto é o mundo político em sua gênese teve uma dinâmica voltada para o espaço público e que isso sim, podemos retomar.
Alguns podem indagar: “Isso já está acontecendo! Contemporaneamente todo local onde se emite uma opinião se faz debate! Não existe mais uma arena única! E a política se faz em todo lugar”. Seria mesmo? Ou o que fazemos é apenas utilizarmos as incríveis ferramentas modernas à nossa disposição apenas para advogar nossa visão de mundo, à revelia de qualquer debate? Compreendo que o espaço público foi reinventado. Não temos uma Ágora, mas várias modalidades dela. Talvez só estejamos subutilizando-a. O debate é o momento em que defrontados posicionamentos distintos, a palavra tornada arma contribui para o esclarecimento humano, para ampliarmos as nossas perspectivas. A persuasão usada apenas como instrumento de retórica pura, talvez não cumpra o seu papel de ação transformadora do mundo social. Ela precisaria estar imbuída desse propósito de ação política. Não considero um exagero ou divagação o entendimento da palavra como instrumento de poder legítimo, tampouco diminuo a sua eficácia em alterar os rumos de uma determinada realidade social.
Sem a palavra, o que somos? Força sem direcionamento, sem ímpeto criativo e transformador. Todavia precisamos devolvê-la ao seu lugar: o espaço público; se a pólis moderna não possui uma Ágora, mas várias Ágoras, conquistemos tais espaços, saindo do nosso claustro privado, seja ele físico ou mental. A política se encontra em todos os âmbitos da vida humana, ela ocupa os espaços entre os indivíduos. Contudo, a política realiza-se apenas no espaço público e a ele deve retornar sempre.
REFERÊNCIAS:
VERNANT, Jean Pierre. "As Origens do Pensamento grego". Rio de Janeiro: Difel, 2002.
ARISTÓTELES. "Política". Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1988.