Enquanto os postulantes a novo morador do Palácio da Alvorada já começam a se movimentar e desenhar suas candidaturas à presidência, sábios e videntes tentam criar prognósticos sobre o ano "mágico" de 2018, onde salvo maiores tropeços, decidiremos quem será o novo presidente da república. Bem, se essa é a preocupação latente de quase todo mundo que deseja o fim da anomia política que vivemos, não percebo a mesma preocupação com aqueles que, junto com o novo presidente, irão compor a elite política no poder e mais do que governar, deverão colocar em pauta uma agenda de reformas que o país precisa para trilhar o rumo do desenvolvimento.
Isto mesmo caro leitor, me refiro aos 513 deputados federais e 54 senadores que deverão ser eleitos no ano que vem, mas que curiosamente não têm o mesmo destaque que a presidência. É sobre eles que eu gostaria de mais do que falar, dividir minha inquietação e anseios. Não pretendo realizar uma exposição sistemática e acadêmica do assunto, mas gostaria de enumerar duas, dentre as diversas possibilidades de interpretação sobre a maior importância dada ao poder executivo (chefiado por prefeitos, governadores e o presidente) em detrimento do poder legislativo (vereadores, deputados estaduais/federais e senadores). Uma delas e que me parece mais óbvia é em relação ao número: é muito mais fácil saber quem é o nosso prefeito ou governador, do que lembrar ao menos que são os vereadores da sua cidade, ou todos os deputados federais que representam o nosso estado. Tente contar nos dedos quantos vocês se lembram e, salvo uma boa memória ou uma pesca no Google, provavelmente a quantidade de nomes lembrados não passará dos dedos da mão. Podem dar uma pausa na leitura e fazer o teste, eu espero.
Outro fator é o peso que o poder executivo tem no nosso sistema político: sendo ele o responsável por executar as leis, fica a seu encargo o controle da maior parte do aparelho burocrático e o maior indutor da ação política por assim dizer. Isso sem mencionar que é atribuição do executivo a arrecadação e a primazia do planejamento orçamentário. Essa preponderância pode ser explicada pela necessidade garantir a agilidade na tomada de decisões (é muito mais fácil um chegar a uma decisão do que centenas, o que exigiria debates e acordos). Se observarmos nosso passado recente, desde a Era Vargas, a figura do presidente assumiu uma importância enorme no nosso sistema político que, formalmente orientado pelo princípio republicano, preza pela separação dos poderes e se assenta no que se chama na ciência política de sistema de freios e contrapesos (um salve ao grande Montesquieu).
E enquanto o presidente goza de relativo prestígio pois é uma encarnação direta da vontade popular, a Congresso Nacional é visto com uma certa desconfiança, principalmente a Câmara Federal, que guarda uma abstrata conexão com a sociedade, difícil de entender. Essa dificuldade decorre principalmente da complexa e confusa forma como os deputados são eleitos: o sistema proporcional. Nele, mesmo você votando em um candidato, seus votos contam para o partido/coligação partidária, onde os mais colocados são eleitos. Esse armengue eleitoral cria aberrações como o fato de que, dos 513 deputados eleitos em 2014, apenas 36 (!) foram eleitos diretamente. O assunto requer muito detalhe e provavelmente a síntese que fiz deve ter ficado mais confusa que o sistema eleitoral que tentei explicar. Reconhecendo humildemente meu despreparo no assunto, indico para quem quiser se aprofundar no assunto, os trabalhos do cientista político Jairo Nicolau, o Papa do sistema eleitoral.
Mas foi em 17 de abril do ano passado, que esse estranhamento com o poder legislativo chegou ao seu clímax: o dia da votação da admissibilidade do impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Ficamos todos aterrorizados enquanto víamos pela TV, em meio à votação, a maneira abjeta como centenas de indivíduos fantasiados de deputados, degradavam o cargo que deveriam representar com o respeito à sociedade e à república. Entre cuspes, gritaria, confetes e menções a um "impoluto" prefeito – que mais tarde fora grampeado por corrupção – foi selado o destino da ex-presidente. Foram cenas que talvez fizessem a descrição do inferno na Divina Comédia não parecer um lugar tão ruim assim.
E é com o diagnóstico de que a nossa representação no âmbito do legislativo vai de mal à pior, que volto ao passado em busca de pistas que possam ajudar a entender o presente. Retomo aqui ao grande Max Weber e o seu brilhante Parlamento e Governo numa Alemanha Reconstruída. A obra mostra qual a sua opinião sobre os rumos que a Alemanha deveria tomar, ainda durante a 1ª Guerra Mundial. Gostaria de retomar aspectos importantes para o momento e que, a meu ver, para mais do que compreender, tatear ainda que no escuro em busca de caminhos para sair da situação crítica que estamos.
Dentre tantos aspectos da obra, destaco dois que merecem atenção. Um foi a situação lastimável que se encontrou tanto o parlamento (reichstag) alemão, abafado durante anos de dominação do Marechal Bismarck, quanto o ambiente político em si, acostumado à vontade solitária e sem grandes líderes que tivessem condições de conduzir o país. Foi após o fim de um período de amarga ilusão, que se notou o vazio moral em que se encontrava o parlamento. O outro aspecto está no dever que o parlamento tinha de se erguer e conter o poder da burocracia, que com o seu caráter de dominação racional, ameaçava o domínio do propriamente político. Apenas o espaço de líderes políticos e não de "carreiristas" teria condições de erguer a fragilizada Alemanha.
Hoje no Brasil, parecemos viver coisa parecida. Durante anos dourados de crescimento econômico, onde a figura do Nosso Guia parecia encarnar todas as aspirações sociais, em um tipo de remake do Estado Novo, foi gestado um tipo de parlamento que estava longe de se portar como um representante legítimo da vontade popular, contentando-se apenas com a velha fórmula da "boquinha": cargos e verbas. De bom grado, o nosso congresso aceitou ser apenas praticamente um balcão de negócios – de empresários e do Planalto –, compondo o lado voraz e interessado do nosso presidencialismo de coalização, mas que prefiro chamar de Cesarismo de coalizão. Assim como o reichstag se omitiu do papel de participar das principais decisões no país, tal qual nosso congresso jogou o jogo Palácio do Planalto, abdicando de sua potência e se comportando como escritório do partido no poder de plantão. Enquanto havia recurso para conseguir votos, a coisa funcionou, mas bastou a crise chegar e a própria presidente Dilma percebeu que, muito antes de Temer, a sua própria base de apoio já era uma pinguela.
E é esse congresso, habitado por essa fauna exótica, que após se ver livre do manto de ferro que voluntariamente vestira, hoje se mostra incapaz de conter os arroubos de arrogância e prepotência de integrantes do Judiciário, Ministério Público e Procuradoria, que empreendem uma caçada implacável - em parte compreensível - ao mundo da política. E no afã de escaparem da cadeia, a classe política tenta descaradamente misturar seu desejo obsessivo de melar a Operação Lava Jato, com o necessário freio que tais corporações precisam ter. Só para ficar em dois exemplos, tanto no caso da gravação ilegal da ex-presidente Dilma, quanto na artimanha usada por Janot para assediar Temer – vide as perguntas enviadas ao presidente –, nenhuma moção uníssona de repúdio. E no segundo caso ainda foi pior, pois ainda deram sequência à inócua acusação.
Embora esse quadro de horror não seja nossa culpa, tampouco ele deixa de ser nossa responsabilidade. Cabe a nós, nos espaços em que for possível, nos atentarmos para a importância que o legislativo possui em nosso sistema político. Sei que é necessária uma reforma política que tornem as regras mais simples e permitam uma maior clareza ao eleitor sobre quem ele está votando. Porém, essa pressão por uma mudança tem que estar latente em nossa sociedade: é por meio da comunicação uns com os outros e explicitando nossas opiniões no debate público, que reavivaremos a chama democrática que manteve aquecido os corações durante o degelo do regime militar, onde sem acesso ao poder executivo, nosso canal de expressão era o Congresso nacional. E com essa chama, intuito de edificar um novo país, que grandes políticos agiram no Congresso, onde a Assembleia Constituinte foi o espírito e a Constituição, a encarnação da soberania popular.
Se é a preocupação com o futuro do país que se torna imperiosa, ela deve conter não apenas a figura do presidente, mas também passar necessariamente pelo questionamento de que tipo de congresso deveremos ter em 2019. Ou lutamos ardorosamente para que o parlamento volte a ter condições de ser um porta-voz ativo das parcelas que compõem nossa sociedade – permitindo a volta dos grandes homens à cena política – e assim, o poder legislativo seja também responsável pela nossa recuperação, ou correremos o risco de após uma navegação em mares tempestuosos, constatarmos para nosso horror, que fizemos mais uma viagem redonda.