Faz algum tempo, tenho refletido um pouco sobre a experiência de solidão. Num modo de vida cada dia mais “hiperconectado”, que nos demanda o tempo inteiro estar “ligados” às informações que circulam nas mídias e nas redes sociais, cada vez mais nos vemos invadidos pelo mundo, o que nos leva, paradoxalmente, a um estado de profundo isolamento e desconhecimento de si. Esse isolamento tem duas faces: uma relacionada a nossa vida excessivamente virtualizada, em que habitamos mais as redes sociais que os espaços públicos, e outra a um padrão de vida mais individualista, pouco colaborativa, pouco coletiva e comunitária, mais voltada à vida privada.
Não irei tratar, no entanto, desses aspectos, mas das consequências desse modo de vida paradoxalmente hiperconectado na virtualidade e desconectado na realidade, hiperconectado às redes sociais e socialmente desengajado de relações humanas concretas, próximas, afetivas. Observando essas contradições, vejo que o equilíbrio nem sempre é fácil de ser alcançado, pois, geralmente, ou mergulhamos e somos invadidos pelas demandas externas, vindas do mundo real ou virtual, do social, interpessoal, familiar, ocupacional, ou, em resistência a esse mergulho e invasão, nos isolamos ensimesmados em nossas próprias existênciais, buscando respostas em nossas próprias verdades construídas, muitas vezes, de forma precária, por falta de referenciais seguros.
Se hiperconectados e mergulhados no social, nos vemos submetidos a infinitos estímulos e demandas do meio, muitas vezes contraditórios, desconexos, confusos, potencialmente negativos, que nos levam a estados de ansiedade diante da impossibilidade de dar conta de todas as informações que nos chegam diariamente nos diversos contextos, reais ou virtuais, em que habitamos. Por outro lado, se desconectados desse mundo externo, ensimesmados, corremos o risco de cair ou na ilusão de um narcisismo auto-suficiente, ou numa depressão por progressivo esvaziamento da vida e do sentido da existência.
Imagino que, para o leitor que chegou até esse ponto do texto, essas idéias ou são estranhas ou mórbidas demais, mas digo que certamente fala da experiência de muitas pessoas reais, que vivem de forma intensa as vicissitudes do mundo contemporâneo. Vivemos em tempos marcados por profundo sofrimento emocional, que se manifesta em quadros cada dia mais cronificados de estresse, ansiedade e depressão. Viver na contemporaneidade, num mundo tão hiperconectado e, ao mesmo tempo, tão desconectado de si e do outro, leva a um progressivo e crônico adoecimento do humano, seu progressivo apagamento e despersonalização, sua conversão em autômato respondente ou em melancólicos narcisos decadentes.
Para sair desse estado - se é que é possível, de fato, “sair” - é necessário experimentar caminhos novos e diversos, caminhos de volta ao humano. Muitos buscam os lazeres, os esportes e as artes, a convivência com amigos, familiares e outros grupos de pertencimento social, como nas diversas religiões, e, em casos “já diagnosticados”, o apoio de profissionais como psicólogos, psicanalistas, médicos psiquiatras e terapeutas alternativos.
Não quero dizer, ao trazer esse panorama, que todos que se sentem de certo modo assim - invadidos pelo mundo ou evadidos de si e em si -, estejam adoecidos. O risco, porém, existe, e precisamos estar atentos a ele. E o caminho para prevenir esses estados de angústia ou melancolia do existir talvez já tenha sido enunciado a mais de dois mil e quatrocentos anos, com a máxima délfica tão cara ao filósofo Sócrates: o “Conhece-te a ti mesmo”. Mas, como conhecer a si, num mundo que nos convoca o tempo inteiro a ser “outro”, a ser algo posto por referenciais externos?
Creio que, tanto na hiperconexão como na desconexão, no social ou no individual, há possibilidades de auto-conhecimento e re-descoberta. Podemos nos conhecer melhor estando com ou outros, mas esse conhecer-se requer uma postura de atenção dirigida a si mesmo, uma forma de se conectar a si mesmo que se dê partir da meditação, da reflexão e da contemplação.
Quando me refiro à meditação, não me refiro necessariamente a práticas orientais que requerem posturas corporais ou técnicas respiratórias, esvaziamentos da mente ou visualizações de imagens sagradas, ou ainda a emissão de sons ou cânticos. Tudo isso são técnicas que ajudam a nos levar a um estado meditativo, porém "o meio não é o fim". Do mesmo modo, a reflexão não é apenas um estado racional voltado para o saber "quem sou, o que sou e para onde vou", mas uma estado de compreensão, que emerge mais de uma contemplação de si do que de um apropriar-se de definições e conceitos. De todo o modo, o fim está no caminhar de volta para si mesmo.
Mas, o que seria esse "caminho de volta"? Como realizá-lo? E, que “si mesmo” é esse para o qual se busca o retorno? O que difere esse “si mesmo” de outros “eus”? Sendo bem realista, eu não saberia dizer, pois também sou um “ser a caminho de mim mesmo”. Não existe uma resposta única, objetiva, definida e definitiva. Essa é a grande questão da humanidade, da ética, da filosofia, das religiões e da mística. Para alguns, o princípio, o caminho e o fim está em Deus. Mas para quem não crê, nem tem fé em um Deus, resta-lhe apenas "si mesmo" e o "mundo".
Embora eu não tenha uma resposta para dar, tenho uma “intuição”. O caminho de volta para si requer silêncio e solidão. Silêncio para poder “escutar” a si mesmo, para poder questionar-se, des-cobrir-se, re-visar-se, re-virar-se, sem que o “outro” seja o imperativo ou a principal referência para esse "ser si mesmo" que se faz conhecer. A solidão se daria por necessidade de essa descoberta pessoal precisar ser realizada, inicialmente, por si e a partir de si, sem mediações. Isso não significa que a pessoa deva se isolar do mundo e deixar de interagir. Não! De modo algum! Mas é necessário ter oportunidade de se encontrar consigo mesmo.
Muitos buscam empreender essa caminhada solitária e silenciosa em algum momento da vida, geralmente na maturidade, quando diante de um “fechamento de sentido”, diante de fortes e impactantes rupturas, ou quando tudo o que se desejava viver e conhecer já se deu, porém ainda há “tempo” de vida a ser vivido, mesmo que falte tempo para viver. Aqueles que não empreendem esse caminhar, ou permanecem no mundo, tensionados pelo “outro” que diz o que se deve desejar e como caminhar, ou desesperam de si. O “caminho de volta” para si, se dá no limiar entre esse dois lugares, ou, anda, no “fracasso” de uma desses modos de viver. Nem sempre o fracasso é material, mas sim de sentido, que busca ou exige ser encontrado.
Para a hiperconexão ou a desconexão deixar de imperar sobre nossa vida, faz-se necessário uma real conexão consigo mesmo, para a partir daí, poder se estabelecer vínculos reais e profundos, com o outro e com o mundo, que não nos atordoe, nem nos deixe em estado de profunda carência de sentido.
Não sei se me fiz claro nesse texto, porém espero que sua mensagem chegue, ao menos como reflexão e possibilidade, para alguns. Não trago essas questões para desesperar ninguém, mas para apontar horizontes de pensar que nos ajude a conhecer melhor a nós mesmos. Realizado esse caminho de auto-conhecimento, talvez possamos res-significar e trans-formar as experiências de solidão e silêncio em sentimento de solitude e música, de presença e de escuta de si.
* Esse texto foi escrito inspirado no filme “SOUNDTRACK” atualmente em cartaz nos cinemas de todo o Brasil. Fica como sugestão minha aos leitores do Soteroprosa para este domingo.
Fonte de imagem:
ANNETTE WOOD FORD (2013). An autumn morning on the beach at Pegasus Bay. Disponível na web em: https://annettewoodford.wordpress.com/2013/04/28/an-autumn-morning-on-the-beach-at-pegasus-bay/