Desde as eleições municipais que ocorreram em 2016, boa parte das análises sobre as candidaturas – principalmente para o executivo – pautaram que, em decorrência do desgaste que a classe política tem sofrido, haveria uma tendência de muitos postulantes se apresentarem como “gestores” e não como “políticos”, enfatizando em suas campanhas o seu lado técnico e eficiente. Com isto, o “mito do gestor” entrou no debate da política do país.
Até aí tudo bem, afinal faz parte do jogo. Mas o assunto que pretendo tratar é a maneira negativa – quando não depreciativa – que os candidatos com esse perfil foram vistos. Em linhas gerais, a crítica vinda principalmente de indivíduos ligados a ideais progressistas, foi a de que candidaturas com perfil simplesmente administrativo e sem o devido aprofundamento de um debate político que levasse em conta sobretudo, problemas sociais e econômicos, retirariam a esfera política de sentido, reduzindo-a uma mera administração das coisas e empobrecendo sua importância. Resumindo, estaria enfatizando apenas o aspecto técnico e gerencial do candidato, deixado de lado questões que deveriam ser pautados no debate para os eleitores que iriam às urnas naquele ano.
O caso mais ilustrativo desta crítica é do então candidato e hoje prefeito de São Paulo, João Dória. De cavalo azarão, ele progressivamente galgou posições na corrida eleitoral e sempre enfatizando sua experiência na iniciativa privada, desbancou os “puro-sangue” e faturou ainda no primeiro turno, o comando da cidade mais importante do país. Logo após o inesperado resultado, o cerne da crítica que ouvi sobre ele, além da pecha “almofadinha”, vinha justamente de sua intenção em se apresentar como simplesmente um gestor. “Isso esvazia o debate político” disseram (e ainda dizem, por sinal). Embora sabendo que outros tantos fatores devam ser considerados para entender a eleição de Dória, não é objetivo da nossa conversa de hoje.
Em alguma medida, essa crítica é pertinente. Concordo que muitos candidatos preferiram se descolar da imagem de político tradicional (expressão agora que me parece estar contaminada com Urânio) e tenham enfatizado o aspecto técnico e gerencial de sua candidatura. Entendo que escolher um candidato não é simplesmente escolher alguém que irá administrar as coisas, tão somente. Também é preciso ressaltar que há quem se arvore na figura de gestor não apenas para ressaltar uma qualidade, mas para também se contrapor à política, associando-a a algo lento e ineficiente e que cumpriria papel menor em nosso cotidiano. Pretendo abordar em nossa próxima conversa, a deslegitimação da política e o seu papel, haja vista a importância que considero ter este tema.
Voltando ao que nos interessa aqui, gostaria de salientar que vejo a observação do fenômeno como pertinente, mas a meu ver é o diagnóstico que deixa a desejar. Analisar os fatos desta maneira - binária - é simplesmente ignorar as manifestações em junho de 2013. Naquele mês, milhões de pessoas tomaram as ruas das principais cidades do Brasil para entre tantas coisas, cobrar da elite política, uma prestação de serviços públicos decente, consentâneos com a voracidade tributária de um Estado muito arrecada e que pouco oferecia de retorno. Cartazes cobrando escolas e hospitais “padrão FIFA”, foram mais do que mais uma manifestação de bom humor tipicamente brasileira. Se tratava de um recado explicito à classe política, de que era preciso uma mudança profunda na relação entre Estado e sociedade. Por mais que deseje fazê-lo, prefiro não ir adiante e falar sobre o que foi entregue do outro lado do balcão pelos políticos, mas para o leitor curioso acerca de minha opinião, basta apenas observar o que mudou de forma consistente no padrão dos serviços oferecidos ou direta ou indiretamente pelo Estado.
E para fundamentar o que até então pode parecer apenas abstração, uma pesquisa feita no início deste ano pela Perseu Abramo, braço intelectual do PT, mostrou entre tantas outras conclusões, uma visão pessimista dos entrevistados acerca de “tudo que está aí”, além da percepção do Estado como uma máquina estatal ineficaz na função de fornecer serviços adequados. Mais do que uma conclusão, isto é um sintoma: há uma nova forma de sociabilidade, calcada em valores que não mais correspondem às concepções de quem se prende a séculos passados, mas que não encontra – até o momento – conexão com uma organização que possa dar forma a tal anseio e transformá-lo em um projeto político. Não obstante, é importante frisar que embora pessimistas quanto à política, o público-alvo da pesquisa não demonstrou um rechaço contundente àquela. Simplesmente está aí, como um vinho novo à procura de um odre coetâneo.
Essa visão de mundo observada na pesquisa se conecta com uma das pautas das manifestações de 2013, que em termos gerais foi a mudança padrão de relacionamento de outra ordem com o Estado, não apenas no aspecto dos serviços públicos, mas uma cobrança de ordem republicana, algo na época passava ao largo do desejado e hoje sequer parece ser suficiente. Parece existir uma certa pretensão em simplesmente ignorar ou diminuir a importância do correto funcionamento dos serviços essenciais a nosso cotidiano, que maneira geral está indissociavelmente ligado a adequada gestão de tais demandas. Assim, alimentar essa oposição entre o mito da gestão que supostamente escamoteia o debate e o projeto político que vê a administração como algo secundário, me parece uma atitude equivocada.
Diante disto, fica o questionamento: para aqueles que levantam cedo e pegam conduções lotadas e sujas para o trabalho, que passam horas em engarrafamentos estafantes, que têm de enfrentar filas e esperar meses para marcar consultas, que têm filhos em escolas sem infraestrutura adequada, de fato o “mito do gestor” é apenas um projeto sem conteúdo político? Me parece que não.
É preciso compreender que a administração da máquina pública e seu correto funcionamento não é supérfluo, mas ao contrário, parece figurar como visão social de uma parcela significativa da população brasileira, bem como não podemos perder de vista que existem determinadas decisões que repercutem coletivamente e são, portanto, políticas, de modo que não podem simplesmente se sujeitar a uma racionalidade que calcule apenas a eficiência administrativa, tal qual uma empresa em busca do lucro. Precisamos fugir de visões políticas que não correspondem mais ao mundo factual e buscar na sociedade os caminhos para mudanças efetivas, mudanças essas que parecem estar bloqueadas por interpretações maniqueístas e um cenário político estéril, odres velhos que felizmente, já não nos servem mais.