Antes do humano se tornar civilizado, vivia livremente na natureza, animal como outros animais, comendo daquilo que podia colher ou caçar, nômade, geralmente em pequenos bandos. Com o advento da agricultura, a sedentarização e a invenção da divisão do trabalho entre homens e mulheres, foi surgindo o processo de civilização, que levou à progressiva divisão da sociedade em função das atividades que realizavam na tribo, incluindo postos de liderança, o(a) chefe do clã, os(as) líderes religiosos(as) e militares, os(as) caçadores(as), os(as) agricultores(as), os(as) artesãos(ãs). Na sociedade contemporânea, essa divisão de papéis se tornou cada vez maior e mais complexa, assim como os enquadramentos do humano dentro de modos institucionalizados de vida.
Quando me refiro a modos institucionalizados de vida, me refiro a um todo de regras, papéis, lugares, em que o ser humano se vê definido e encerrado, destituído, muitas vezes, em sua liberdade de ir e vir, ser e agir de acordo com seu desejo e sua individualidade, influenciado e determinado por essas instituições.
Esse processo de institucionalização do humano se inicia desde cedo, na família, nossa primeira célula de socialização, que encerra papéis e scripts bem definidos. Avô/avó, cônjuges, pai/mãe, padrasto/madrasta, filhos/enteados, netos, agregados (nas famílias mais extensas), cada um ocupando um lugar mais ou menos predefinido, envolvidos na divisão de tarefas domésticas, papéis de cuidado dos mais velhos com os mais novos, ou vice-versa, no prover economicamente o sustento, o afeto, estabelecendo-se relações de poder, obediência ou subordinação.
Depois da família, temos a escola, com a diferenciação entre alunos, professores, coordenadores, diretores e toda uma gama de atividades de apoio à manutenção do funcionamento da instituição educacional. Lá se transmite conhecimento e também regras, de convivência, de conduta, de disciplina, que posteriormente servirão como paradigma para o mundo adulto, para o mercado de trabalho, onde, já “formados” e “formatados”, iremos dedicar a maior parte de nossas vidas “produtivas”.
Aqueles que não se adequam bem ao modelo formatado pelas escolas tenderão ao mercado informal e ao exercício de trabalhos “autônomos”. Os “bem sucedidos” – ao menos dentro da nossa brasileira cultura seletiva “vestibular-concurseira” – ingressam nas universidades publicas ou privadas e, com sorte, se empregarão em algum órgão ou empresa públicos. Esse pelo menos tem sido o sonho de muitos brasileiros recém-forma(ta)dos, que buscam estabilidade na vida profissional, o que, para algumas mentalidades mais “empreendedoras e liberais”, é uma opção deveras comodista. Para a nossa classe média, no entanto, esta é a garantia de uma vida com conforto e segurança, que permite a realização de projetos bem “pequeno burgueses”, de constituição de uma família nuclear, aquisição de bens e imóveis, compra de um carro, realização viagens, de preferência para os EUA ou para a Europa, em pacotes de férias de agências de turismo.
Ironias à parte quanto ao modo como nossa classe média pensa o seu modelo de “vida feliz”, o que quero ressaltar aqui é o fato de toda a nossa vida contemporânea estar organizada em torno de instituições, sejam elas simbólicas ou culturais, como a família, o casamento, as relações hierárquicas nas interações sociais, os papéis mais ou menos pré-definidos, os tabus, ou as organizações, como as escolas, as universidades, as empresas e corporações, os órgãos públicos, etc. Toda a nossa vida, desde o nascimento no hospital, nosso registro nos cartórios, nossa educação nas escolas e universidades, nosso trabalho nos escritórios e até mesmo a nosso adoecimento e morte se organizam institucionalmente e organizacionalmente, onde há papéis definidos e scripts a serem desempenhados, dentro dessas estruturas de gestão (ou “indigestão”) social, política e econômica da vida.
Minha maior preocupação ao apresentar este breve panorama da institucionalização do homem é a questão do lugar da vida, o lugar do humano real, que vive sua individualidade, sua singularidade e, principalmente, seu desejo e o exercício de sua liberdade. Institucionalizados desde muito cedo, nas diferentes organizações, domesticamos nosso corpo e nossa alma ao ponto de desejarmos verdadeiramente permanecermos toda a nossa vida vinculados a essas instituições, aspirando pela estabilidade e constância de nossos vínculos sociais, econômicos, profissionais e afetivos. Não sou particularmente contrário a essa escolha, considerando inclusive muito satisfatória para pessoas de perfil de personalidade mais conservador, adaptado a rotinas, cumprimento de regras e procedimentos bem definidos, no entanto, penso naqueles cuja "diferença" e espirito mais inquieto não se adequam necessariamente e esse modo “pasteurizado” de vida.
Alguns, desde cedo, não se adaptam bem à escola, não têm o desempenho esperado nem o comportamento mais ordeiro e disciplinado. Outros não se adaptam a rotinas de trabalho repetitivas, com ponto de entrada e saída, passando por vários empregos, vindo a desembocar na informalidade ou no trabalho “autônomo”. Alguns, ainda, não provém nem se adaptam a um modelo de família nuclear, constituída a partir de relações conjugais monogâmicas ou “socialmente aceitáveis” para a concepção do ideal matrimonial cristão.
A todos aqueles que não se adequam a esses modelos, a esses scripts pré-determinados por nossas instituições sociais, resta o lugar e o papel do transgressor, do questionador, do estranho, do incomodo. Este lugar nem sempre é confortável para aquele que o ocupa, embora possa ser o lugar que melhor corresponda ao seu modo de ser, aos seus desejos, ao seu estilo de personalidade, à sua identidade pessoal e à sua liberdade.
Os conflitos nem sempre são inevitáveis para essas pessoas, que transgredem as regras e os scripts, nem sempre por rebeldia. Muitos sofrem, nas relação sociais com pessoas próximas ou no acesso aos contextos institucionalizados, sanções como a evitação, o isolamento e até a ruptura dos vínculos. Muitos, ainda, adoecem e morrem em função destas sanções, vítimas do preconceito, da violência ou do adoecimento mental e emocional.
É importante, no entanto, levar em consideração que, para além da adequação à quaisquer instituições ou scripts, o mais importante é o humano, a vida humana, seu bem-estar, sua realização como pessoa e, por que não, sua felicidade. Sim, a felicidade! Essa tal felicidade, já meio fora de moda, até meio piegas, em tempos tão desbotados, cinzentos e desiludidos do humano. A felicidade e a vida humana são o mais importante.
Certamente, ainda temos muito o que avançar em nosso século XXI em relação ao humano. Creio eu que, para isso, o primeiro e mais importante passo talvez seja a desinstitucionalização e reinvenção do humano, da vida e da noção de felicidade. Para isso, faz-se necessário a emergência de novos princípios de vida e olhares novos e mais luminosos, que operem em direção à libertação e emancipação, e não encarcere o homem em modos cristalizados e anacrônicos de existência.